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sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A FARRA DO BODE

A FARRA DO BODE
Recebi para publicação dois artigos sobre “O Bode na Maçonaria”. Já tive a oportunidade de divulgar o mesmo teor, sem que, entretanto, não evitasse algum exagero e ufanismo na matéria.

Permitam-me os IIr∴ que gentilmente me enviaram esses escritos, de transcrever o que o Ir∴ Eleutério Nicolau da Conceição, estudioso no assunto, e membro da Academia Catarinense de Letras Maçônicas, nos diz a respeito.

Possuo guardada esta manifestação por um bom tempo, tendo chegado, pois, o momento, de divulgá-la.

Caro irmão Jerônimo, permita-me comentar o texto enviado. Já o conhecia de outras fontes, e creio que o momento é oportuno para esclarecer certos equívocos. Apesar de antigo, ele é uma ficção baseada no desconhecimento da história. Senão vejamos: "Vários apóstolos saíram pelo mundo para divulgar o cristianismo e foram para o lado judaico da Palestina"

Ora, os apóstolos (assim como Jesus) eram Judeus, e sairam da Palestina, levando o evangelho para o resto do mundo. Como judeus, eles, obviamente, conheciam todos os costumes desse povo. O autor dessa história fantasiosa parece desconhecer esse fato, considerando esses apóstolos estrangeiros na Palestina. Da mesma forma, ele desconhece que o Apóstolo Paulo, era também judeu, da tribo de Benjamim, e Fariseu (a facção do judaísmo mais rigorosa no que se refere ao cumprimento da lei), portanto, profundamente conhecedor dos costumes de seu povo. Também o costume ao qual ele se refere, parece ter sido ouvido de terceiros, e bastante distorcido. Na verdade, trata-se do seguinte:

SEGUNDO NOS NARRA A BÍBLIA, DESDE A ÉPOCA DOS PATRIARCAS (ABRAÃO TERIA VIVIDO CERCA DE 1850 A.C.), EXISTIAM NO CULTO HEBRAICO SACRIFÍCIOS VOTIVOS A DEUS. ERIGIAM-SE ALTARES DE PEDRA, SOBRE OS QUAIS DERRAMAVA-SE ÓLEO E SACRIFICAVAM-SE OVELHAS, CARNEIROS E BODES. ESCOLHIA-SE O MELHOR ANIMAL DO REBANHO, QUE ERA MORTO E QUEIMADO SOBRE O ALTAR, "ELEVANDO-SE A FUMAÇA COMO PERFUME AGRADÁVEL AO CRIADOR".

No transcurso do êxodo nos desertos da Arábia, Moisés codificou o cerimonial litúrgico do culto, detalhando o procedimento adequado, e a natureza de cada oferenda correspondente ao pecado que a oferta tinha intenção de remir. O pensamento subjacente era que o ofertante transferia sua culpa ao animal e, morrendo este, aquele ficava limpo e puro. Daí a origem do termo "bode expiatório", alguém que paga pela culpa de outro.

No livro de Levítico, no primeiro capítulo, lemos:

"... quando um de vós fizer uma oferta ao Senhor, podereis fazer esta oferenda com animal grande ou pequeno. Se sua oferenda consistir de animal grande, oferecerá um macho sem defeito; oferecê-lo-á à entrada da tenda da reunião, para que seja aceito perante o Senhor". (Lev 1. 2,3)

Mais adiante, no capítulo 4 encontramos:

"Se alguém do povo pecou involuntariamente, cometendo uma ação proibida pelo Senhor, tornando-se assim culpado, tão logo tome consciência de seu pecado, trará sua oferta pelo pecado cometido, uma cabra sem defeitos. Imporá as mãos sobre a cabeça da vítima pelo pecado e a imolará no lugar onde se oferecem holocaustos. O sacerdote tomará com o dedo um pouco do sangue dela e os depositará nos chifres do altar dos holocaustos. Depois derramará todo o sangue na base do altar." (Lev 4.27-29).

Havia uma cerimônia especial entre os israelitas, na qual dois bodes tinham participação especial. Esta narrativa encontra-se também no livro de Levíticos, no capítulo 16. O texto nos apresenta Deus dando instruções a Moisés a respeito do cerimonial a ser desenvolvido por seu irmão Aarão, o Sumo Sacerdote:

"Receberá da comunidade dos filhos de Israel dois bodes destinados ao sacrifício pelo pecado, e um carneiro para o holocausto. Depois de haver oferecido o novilho do sacrifício pelo seu próprio pecado e de ter feito o rito de expiação por si mesmo e pela sua casa, Aarão tomará os dois bodes e os colocará diante do Senhor, na entrada da Tenda da Reunião. Lançará sorte sobre os dois bodes, atribuindo uma sorte ao Senhor e outra a Azazel. Aarão tomará o bode sobre o qual caiu a sorte "para o Senhor" e fará com ele um sacrifício pelo pecado. Quanto ao bode sobre o qual caiu a sorte "para Azazel" será colocado vivo diante do Senhor, para fazer com ele o rito da expiação, a fim de ser enviado a Azazel, no deserto.(...) Imolará então o bode destinado ao sacrifício pelo pecado e levará o seu sangue para detrás do véu. Fará com esse sangue o mesmo que fez com o sangue do novilho, aspergindo-o sobre o propiciatório e diante deste. Fará assim o rito de expiação pelo santuário, pelas impurezas dos filhos de Israel, pelas suas transgressões e por todos os seus pecados.(...) Tomará do sangue do novilho e do sangue do bode e o porá nos chifres do altar, ao redor. Com o mesmo sangue fará sete aspersões sobre o altar, com o dedo. Assim purificará e o separará das impurezas dos filhos de Israel. Feita a expiação do santuário, da Tenda da reunião e do altar, fará aproximar o bode ainda vivo. Aarão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode e confessará sobre ele todas as faltas dos filhos de Israel, todas as suas transgressões e todos os seus pecados. E depois de tê-los assim posto sobre a cabeça do bode, enviá-lo-á ao deserto, conduzido por um homem preparado para isso, e o bode levará sobre si todas as faltas deles para uma região desolada.(...) E aquele que tiver levado o bode a Azazel deverá lavar suas vestes e banhar o corpo com água, e depois disso poderá entrar no acampamento."

A renomada tradução da Bíblia conhecida como A Bíblia de Jerusalém, em nota de rodapé no livro de Levítico nos informa de crença existente entre os antigos hebreus e cananeus, segundo a qual as regiões desérticas eram habitadas por um demônio chamado Azazel, ao qual, na cerimônia descrita acima, era enviado o bode carregando os pecados do povo. Este é o protótipo do "bode expiatório", pois leva sobre si culpas alheias, morrendo nas terras áridas, distantes da fecundidade de Deus, por isso habitadas por demônios. Em certa época, os israelitas costumavam sacrificar também a gênios em forma animal, notadamente de bode, que se supunha habitar as regiões desérticas. Esta figura agregou-se à conhecida imagem da mitologia grega: os sátiros perseguindo as ninfas nos bosques, seduzindo-as com o mágico som de suas flautas. Representantes do deus Pã, deus das florestas, dos rebanhos, pastores e vida silvestre, exibiam curiosa figura: tinham cascos e pernas de bode, barba e chifres, tocando sua flauta, e com ela encantando animais e ninfas, eram vistos pela mitologia grega de modo positivo e bem-humorado. No judaísmo antigo, contudo, figura semelhante era associada a demônios habitantes de locais desertos, aos quais faziam-se oferendas.

É sobre esse costume que recai a proibição do capítulo 17 do livro citado:

Não mais oferecerão seus sacrifícios aos sátiros, com os quais se prostituem, isto é uma lei perpétua, para eles e seus descendentes ( Lev 17.7).

Imagens da sensualidade, foram associados pela mentalidade cristã medieval ao conceito cristão de Satanás. A figura de satã com chifres, pequena barba, pernas e cascos de bode, foi decalcada dos sátiros gregos.

No período de estagnação cultural e crescente superstição pelo qual passou a Europa da época feudal à Renascença, e também durante a vigência da "Santa" Inquisição, desenvolveram-se no imaginário popular (às vezes com fundamento real) as narrativas de cerimônias mágicas, círculos de feiticeiras, cultos demoníacos e missas negras com sacrifício de crianças.

Quando o rei francês Felipe, o Belo, decidiu apoderar-se da imensa riqueza amealhada pelos Templários, no início do século XIV (1307), com o apoio do papa Clemente V, elaborou libelo acusativo onde se inseriam descrições de cerimônias heréticas de profanação do crucifixo, da hóstia e cultos satânicos. Falava-se de uma cabeça supostamente adorada pelos templários, chamada "baphomet", que em algumas versões teria a forma de um bode, e em outras de um torso feminino com cabeça de bode. São bem conhecidas as conseqüências daquelas acusações: a poderosa Ordem dos Templários foi desfeita, seus membros, perseguidos, fugiam por toda Europa, sendo seu último Grão Mestre, Jaques de Molay queimado vivo na praça em frente da igreja Notre Dame de Paris.

Após o início do século XVIII, quando a maçonaria assumiu seu caráter especulativo, defendendo o livre exame de todas as idéias, não aceitando outro dogma além da existência do Grande Arquiteto do Universo, colocou-se em confronto com o pensamento religioso da época. Apontada por alguns autores como herdeira da Ordem do Templo, a instituição maçônica viu serem lançadas sobre si muitas das acusações antes imputadas aos monges guerreiros. Por serem suas reuniões secretas, aguçava-se a imaginação popular, e facilmente aceitavam-se versões apócrifas de rituais maçônicos descrevendo cerimônias sacrílegas de rejeição ao cristianismo, e cultos satânicos, com proeminência da figura do bode, emblema mor do príncipe dastrevas. É importante lembrar que, ao compor seu acervo de símbolos, a maçonaria adotou também o pentagrama, a estrela de cinco pontas, usada também em cerimônias de magia negra. No uso maçônico o ápice da estrela aponta para cima, podendo-se dentro dela inscrever uma figura humana significando o domínio da razão (cabeça) sobre os sentidos, do espírito (a Quinta essência) sobre a matéria (o quaternário). Nas cerimônias mágicas, as pontas para cima e o ápice para baixo representam o inverso do significado comentado: domínio dos sentidos sobre a razão e da carne sobre o espírito. Vem assim representado o símbolo do satanismo, com a inserão da figura do bode na estrela invertida: chifres e orelhas nas pontas superiores e laterais, barba na ponta inferior.

Em 1885, o francês Gabriel Jogang Pages, com o pseudônimo de Leo Taxil, aproveitando a situação de confronto que existia na França entre a maçonaria e a igreja católica, iniciou a publicação de inúmeros livretos anti-maçônicos, onde descrevia minúcias de cerimônias satânicas supostamente praticadas pela maçonaria. Em 19 de abril de 1897, confrontado com a iminência de seu desmascaramento, em conferência pública, e na presença de autoridades eclesiásticas e jornalistas, ele confessou o embuste, vangloriando-se do apoio recebido da igreja e de ter conseguido enganar a todos por 12 longos anos. Por essa época, outros autores já tinham utilizado os livros de Taxil como referência, e outros ainda citavam os textos dos primeiros, desenvolvendo assim o que os maçons norte- americanos vieram a chamar de "The lie that will never die" A mentira que nunca morrerá.

Estas são as razões porque a figura do bode está historicamente associada aos cultos satânicos, e de modo enviesado, à maçonaria, sendo totalmente sem sentido as histórias apresentadas no texto comentado.

Ciclicamente, autores oriundos principalmente de igrejas fundamentalistas desenterram os livros de Taxil, ou de outros nele embasados, trazendo outra vez à luz as velhas acusações. Há alguns anos surgiu nas livrarias evangélicas a tradução de um livro de original norte- americano do autor William Shnowebelem, dizendo tratar-se de ex- maçom do grau 32, arrependido de suas práticas anticristãs, resolvido a revelar os "segredos tenebrosos" da maçonaria. A leitura atenta revela as inúmeras contradições do autor, que se confessa antigo praticante de ritos mágicos de bruxaria (sobre cuja natureza ele mantém segredo), antes de ter sido iniciado maçom, e dentro da nova ordem interpretou os novos símbolos a partir de sua antiga fonte de referências. Faz também uso indiscriminado dos textos de Leo Taxil, sem citar referência, descrevendo a maçonaria como declaradamente satânica, diretamente responsável por todos os males da atual sociedade. Em tom inflamado, desenvolve sua prédica conclamando a uma nova "caça às bruxas" (os maçons, no seu entender), chegando a extremos ridículos de propor rituais de purificação para edifícios cuja pedra fundamental tenha sido colocada por maçons, bem como sua exclusão de postos no serviço público!

O problema desse tipo de livro é o fato de seus leitores terem da maçonaria idéias superficiais, de tendência negativa e ao lerem textos bíblicos veementes, condenatórios, que conhecem, não sabem que eles não se aplicam à maçonaria, como quer fazer crer o autor.

Assim cresce, principalmente entre os evangélicos, a convicção falsa da negatividade da maçonaria, associadas a cultos nefastos, com sacrifícios de bodes, entre outras práticas esdrúxulas.

Os maçons brasileiros, refletindo o espírito irreverente e jocoso do nosso povo, procuraram ridicularizar essas acusações fazendo uso humorísticos da figura do bode: de monóculo e cartola, com uniformes regionais, etc. O uso e abuso da figura caprina generalizou-se de tal modo que mesmo entre os maçons, existem aqueles menos informados, que pensam ser o bode um símbolo maçônico! Assim chegamos a uma distorção no mínimo curiosa: os maçons têm aplicado a si mesmos, quase como emblema (ainda que humoristicamente), a pecha que lhes foi imputada por seus adversários!

Dentro desse contexto, torna-se necessário ponderar sobre o seguinte: Os visitantes que percorrerem os salões sociais anexos aos templos, e em algum deles virem imagens alusivas ao famigerado ruminante, entenderão prontamente tratar-se apenas de "humor maçônico"? Considerando-se que as idéias populares sobre maçonaria ainda hoje associam pactos e cerimônias macabras à instituição, não poderiam ser os visitantes levados a interpretar os citados elementos como indícios da confirmação das velhas acusações? Se os princípios maçônicos não admitem o cultivo de falsas idéias, ainda que possam elas trazer benefícios, menos ainda deverão ser difundidas imagens associadas a conceitos que denigrem a instituição. Ou será que alguns maçons procuram cultivar a idéia infantil de "assustar os profanos", bem como a satisfação de serem olhados como homens misteriosos, associados a poderes ocultos e transcendentes? Portanto, é mais do que tempo de se extirpar da representação gráfica maçônica o uso dessa figura, que nada traz de positivo, além do riso, e é tão carregada de pesadas conotações negativas.

Peço desculpas pela extensão do comentário, mas decidi dar minha contribuição para o esclarecimento definitivo desse tema. Um TFA.

Eleutério

Fonte: JBNews – Informativo nº 0063

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