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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

A ARTE DE PALAVREAR

A ARTE DE PALAVREAR

Artifício bastante usado nos discursos políticos, a retórica é um dos instrumentos centrais na estratégia de argumentação. Dentro do pensamento filosófico, Aristóteles estabeleceu os conceitos fundamentais para convencer, persuadir e emocionar.

Talvez isso possa parecer um tanto difícil, mas pense em um político que você, leitor, julga ser habilidoso. Ok, pense no que o torna hábil: é sua capacidade de descobrir o que determinada população precisa? Ou seria a capacidade de propor soluções pertinentes e, de fato, resolver esses problemas? Agora, pense em como esse político, essa figura pública, atinge os seus eleitores, como ele chega até essas pessoas. Em que pesem as novas tendências do marketing político[1] e os últimos avanços tecnológicos, esse político – velho ou moço, homem ou mulher, caucasiano ou afrodescendente – consegue alcançar o seu alvo com algo tão simples quanto elementar: os políticos usam as palavras.

Que os políticos gostam de falar (e realmente precisam falar) todos sabem; o que poucos têm noção é que, na maioria das vezes, as palavras que são ditas nos discursos políticos não são jogadas a esmo, mas, ao contrário, exaustivamente pensadas, estudadas e ensaiadas. A essa “arte-técnica” da oratória dá-se o nome de retórica. E, diferentemente do que se imagina, a retórica não é um recurso criado pelo marketing eleitoral.

Aristóteles tem um livro que, infelizmente, não faz parte do catálogo editorial brasileiro[NB], mas nem por isso deixa de ser fundamental. Em “Retórica”, o filósofo grego analisa com precisão os elementos que constituem um discurso. A leitura do livro mostra que alguns conceitos tidos hoje como inovadores já eram analisados pelo pensador, como o fato de a retórica ser dividida em três tipos: a política (ou deliberativa); a forense (ou legal); e o epidíctico (ou a oratória que censura ou louva um determinado elemento, aspecto, personagem).

No caso da retórica deliberativa, Aristóteles teoriza que a maneira mais importante e efetiva para obter sucesso em persuadir o eleitorado e dissertar sobre as coisas públicas é entender profundamente as formas de governo, assim como seus costumes, suas instituições e seus interesses. Isso porque, argumenta Aristóteles, “os homens são convencidos por considerações de seus interesses; e seu interesse está baseado na manutenção da ordem estabelecida”.

A discussão mais comum, hoje em dia, gira em torno da chamada retórica de Perelman[2], que tirou seus exemplos de discursos filosóficos e políticos, entre outros. Devido a isso ele assume o caráter de convencimento que a retórica proporciona aos discursos dos oradores. “Eu diria que a retórica se configura por um conjunto de estratégias linguísticas que visam à persuasão por meio da comoção”, opina a professora e doutoranda em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Suzana Leite Cortez. João Bôsco Cabral dos Santos, doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica melhor: “o orador chama atenção construindo uma imagem que espelhe aquilo que seus ouvintes gostariam de ouvir. A gesticulação e a forma como se aproxima, toca e fala com as pessoas têm que estar em sintonia com a forma como as palavras são ditas e como esse orador direciona seu olhar”. Para João Bôsco dos Santos, “nos dizeres políticos é preciso falar o que o outro quer ouvir de si, como se fosse o outro dizendo para si mesmo”.

No maior dos dicionários da língua portuguesa, o Houaiss (Ed. Objetiva), a palavra “retórica” recebe significado de:
  • A arte da eloquência, a arte de bem argumentar;
  • Emprego de procedimentos enfáticos e pomposos para persuadir ou por exibição; discurso bombástico, enfático, ornamentado e vazio;
  • Discussão inútil; debate em torno de coisas vãs.
  • Sendo os dois últimos indicados como de uso pejorativo.
Se todos esses significados, para o bem ou para o mal, fazem parte da política, fica fácil dizer que a “retórica é intrínseca à arte da política”. E essas são as palavras do professor e doutor em História Econômica, Fábio Duarte Joly, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Segundo Joly, “sendo a política um exercício do convencimento com o intuito a se chegar a um consenso, a retórica joga nela um papel fundamental”.

O eleito

Quanto a esse último item, como não pensar no presidente dos Estados Unidos, eleito no fim de 2008, Barack Obama? “Yes, we can” foi o mote que fez história, que realmente moveu multidões às urnas. “Ele sensibilizou seus eleitores, utilizando o que denominamos uma retórica da redenção redimida: creiam-me, erramos, mas somos fortes, os melhores, sempre”, sentencia Bôsco. Já para o cronista português, José Manuel dos Santos, ouvir Obama “é voltar a ler a Retórica de Aristóteles. Ele convence porque argumenta (logos[3]), porque emociona (pathos[3]) e porque há um ‘eu’ que diz ‘vós’ e é reconhecido (ethos[3])”.

A parceria entre Obama e seu jovem redator de discursos de 27 anos, Jon Favreau, certamente funcionou melhor do que o esperado. Favs, como é conhecido, tornou-se um especialista na escrita do próprio presidente e entre os discursos deste escondem-se inúmeras palavras redigidas ou editadas pelo chamado prodígio.

A propósito, muito se fala em torno das habilidades oratórias do presidente dos EUA, mas esquece-se de que o Brasil teve um presidente – considerado por alguns um demagogo – que também tem o dom da palavra. Nesse caso, ficam claras, portanto, as diferentes maneiras de se apoderar da retórica. Em seus discursos, o presidente Lula se preocupa em utilizar um recurso que, na opinião de Bôsco, é voltado para conquistar os que fazem questão de rejeitá-lo, mas só consegue aumentar o apreço dos que o amam e “fomenta, ainda mais, o recalque de uma sociedade de uma social democracia falida, calcada na força disciplinarizante de instituições reguladoras”, brada o professor. À sua maneira, Cortez prefere indicar o uso de expressões populares, “como uma forma de estar mais próximo do grande público”.
Usar ou não usar? Eis a questão

Duas coisas podem acontecer àqueles que decidem realmente usar a arte de bem argumentar em seus dizeres. Podem receber grandes elogios sobre as performances utilizadas ou pelas belas e sábias palavras – mas, nesse caso, o elogio seria mais bem aplicado se dirigido aos ghost writers por trás dos discursos -, ou críticas ferrenhas atacando-os, acusando-os de fazer logomaquias por meio de happenings bizarros[4] e exagerados que transformam a política, por exemplo, em uma técnica para única e exclusivamente conquistar o poder. “A retórica desprovida de qualquer estudo científico é comumente vista como discurso ‘floreado’. Daí podemos falar em algo pejorativo”, arrisca Cortez. Como foi dito anteriormente por Joly – que também é o organizador da obra “História e Retórica: ensaios sobre historiografia antiga” (Ed. Alameda) -, Bôsco concorda que a retórica sempre fez parte da política e afirma que “a política sempre foi constituinte, constitutiva e constituída pela retórica”.

“O ser humano sempre teve necessidade de fazer valer suas opiniões”, completa Cortez, que coloca, além disso, que o uso da retórica tem bases culturais e se diferencia conforme mudam as habilidades de orador para orador e os entornos sociais[5]. O que difere seu uso atual com o de tempos anteriores é que hoje ela funciona como um ponto de tensão “da competição entre marqueteiros”, indica Bôsco. “Outrora a retórica era sempre apagada dos dizeres políticos porque soava como dizeres de uma égide proselitista, demagógica”, ele compara. Atualmente, é como se os oradores fizessem parte de um “campeonato de força ilocucionária”. A professora Suzana discorda dessa mudança. Para ela, são os “sujeitos que fazem parte da política” que podem mudar as formas de discursar, e não o contrário.

Do fim ao princípio

De volta ao político imaginado no início deste texto, é preciso saber que ele está sujeito aos desvios que a sensação do poder pode proporcionar. Todavia, se ele é lembrado por suas habilidades oratórias, isso pode ser considerado algo bom. Retornando às palavras do cronista português, “a reanimação de um verbo político inanimado é o início de um início. Porque a dignidade da política começa na dignidade da palavra que a diz”.

Para Joly, mesmo que o senso comum ligue retórica à enganação, se as pessoas souberem avaliar os discursos políticos tendo em vista sua construção retórica, elas terão meios suficientes para analisar melhor um determinado político. Dessa forma, torna-se óbvio dizer que a retórica por si só não é boa ou má. Bons ou maus são aqueles que se utilizam dessa arte com, ou sem, suas próprias noções de integridade.

Notas

[1] – Carreira levada ao ápice ao longo da década de 1990, o marketing político já é de conhecimento mesmo do público que não é militante. Além disso, no entanto, há os bastidores. No filme“Recontagem“, protagonizado por Kevin Spacey, a alta cúpula decide com ações de marketing de guerrilha quais são as estratégias que devem ser tomadas para vencer as eleições para a presidência em 2000.

[2] – Filósofo do direito, o polonês Chaim Perelman observou que as áreas da Filosofia, do Direito e da História se estabeleciam utilizando a retórica como instrumento elementar. No site do Programa Especial de Treinamento em Ciências Jurídicas, há mais informações a respeito.

[3] – Logos, Ethos e Pathos são as três principais formas de persuadir a audiência/ público/leitores. Logos é o apelo utilizado à razão; pathos é o voltado às emoções; e ethos é aquele calcado na reputação de quem se pronuncia.

[4] – Entre acontecimentos dignos de nota vale a pena recordar a performance do ex-deputado federal Roberto Jefferson durante um depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o escândalo dos correios. Naquela ocasião, o político atraiu a atenção usando artimanhas específicas de retórica, como se vê no link a seguir: http://www.youtube. com/watch?v= OkhaxJOI5Ss&NR=1

[5] – Os artifícios da retórica necessitam respeitar o contexto da audiência. De nada adianta, por exemplo, apresentar uma fala rebuscada para um público que não partilha do mesmo código de compreensão de quem transmite a mensagem. Nesse sentido, cabe ao político – caso se trate de um político – analisar se as metáforas cabem e se serão bem aceitas dentro daquele cenário. Talvez por esse motivo, a mensagem central é sempre a mais simples. Tome-se como exemplo o fato de Lula e Barack Obama terem feito uso, em 2002 e 2008 respectivamente, menção à ideia de “mudança”.

[NB] – Para a felicidade dos amantes da leitura, o livro Retórica já está disponível no catálogo editorial brasileiro. Inclusive é uma das sugestões de leitura do blog na página Biblioteca.

Outras Notas

[a] – Nelson Rodrigues se referia àqueles cuja capacidade retórica era superlativa como “homem-discurso”. No caso, o jornalista se referia ao também jornalista e político Carlos Lacerda, um dos principais algozes do então presidente Getúlio Vargas. Lacerda – ou Corvo, como era conhecido – era dotado de uma verve tão apaixonada quanto inflamada não apenas ao falar, mas também ao escrever. Não por acaso, uma de suas biografias se chama “O Demolidor de Presidentes”.

[b] – Preparando um Discurso:

A preparação de um discurso requer inúmeros cuidados, principalmente porque suas variações dependerão dos resultados que o orador pretende obter e do público ao qual ele irá se dirigir, como adverte Joly. “A emoção, a necessidade de tocar fundo os atos humanos, é uma característica marcante”, enumera Cortez.

Mesmo com essas subjetividades, de acordo com Bôsco, é possível elaborar uma lista das principais características de um discurso retórico, que deve:
  • Remeter a uma crença das pessoas do auditório;
  • Fabular imagens de realização de quem o escuta;
  • Conter dizeres que enganam porque persuadem por sua verossimilhança com um real possível;
  • Produzir efeitos de espelhamento do outro naquele que escuta;
  • Legitimar memórias, desejos imaginários, valores de verdade;
  • Fomentar a capacidade de um ser de sentir-se realizado;
  • Conter dizeres que deixam escapar vestígios da imaginação de quem ouve, que revelam seus saberes;
  • Provocar no ouvinte sensações de poder.

Autor: Luiz Marcelo Viegas

Mestre Maçom da ARLS Pioneiros de Ibirité, nº 273, jurisdicionada à GLMMG. Membro da Academia Mineira Maçônica de Letras. Contato: opontodentrodocirculo@gmail.com

Fonte: https://opontodentrocirculo.com

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