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sábado, 14 de maio de 2022

REFLEXÕES SOBRE O RITO FRANCÊS

REFLEXÕES SOBRE O RITO FRANCÊS

Voluntariamente não se estabelece uma distinção entre os planos maçónicos simbólico e filosófico, dado que o Rito Francês forma um continuum coerente, desprovido de contradições e de mudanças de direção, composto por sete níveis sucessivos, complementares e linearmente organizados. Assim por exemplo, não conta graus de vingança que deveria abandonar depois, e preconiza ab initio a Justiça; também não contém “revelações” alegadamente inacessíveis à maioria, à semelhança do que se passa com o Soberano Príncipe Rosa-Cruz e com o Cavaleiro Kadosh, do REAA. 

Neste Rito os planos simbólico e filosófico são duas componentes simultaneamente antagónicas e complementares à semelhança da imagem refletida por um espelho, ou da relação dialética entre solstício e equinócio – e o terceiro elemento, a Vida, que os transcende. 

O historial do Rito Francês é hoje sobejamente conhecido, da sua chegada a França pela mão dos exilados Escoceses “Modernos” Jacobitas (refiro-me obviamente aos derrotados partidários de Jaime II) e posterior difusão pela Europa oitocentista e respetivos impérios coloniais, passando pelo declínio da prática das Ordens de Sabedoria e sua preservação no Conservatório dos Ritos do GODF, até à sua refundação nesta mesma Obediência em 1999 e à sua atual pujança e crescente disseminação planetária. 

Assim, não faz sentido discutir a sua legitimidade, nem insistir sobre uma anterioridade historicamente comprovada, mas que não constitui mais-valia e apenas alimenta uma competição imbecil com outros ritos, isto é, com outras sensibilidades e percursos igualmente legítimos e que se inserem no património comum. 

O Rito Francês é terreno, desprovido de metafisica e de transcendência, na linha direta do “sapere aude” kantiano. 

Rito de desassossego e de procura com forte componente libertária, que a gradual desafetação ao longo do século XIX preservou das influências e acrescentos apócrifos caraterísticos da procura de status e de legitimidade social por parte de uma burguesia próspera, enriquecida pela revolução industrial e preocupada em distinguir-se do vulgum pecus

A única elevação proposta pelo Rito francês é acima de si próprio, segundo a perspetiva nietzschiana de ultrapassar os próprios limites: “para se fazer grandes coisas não há que ser um grande génio; não se trata de estar acima dos outros, mas de estar entre e com eles”, afirmava já o Ir.: Charles de Montesquieu no século XVIII. 

É nesta perspetiva que a quinta ordem, exterior ao percurso de 3+4 à semelhança do terceiro passo do aprendiz, tem o branco por cor simbólica e é virada para o exterior: análise e estudo de todas as variantes do rito francês, análise e estudo do património global da maçonaria em todos os seus ritos, graus e ordens e imersão direta no templo exterior da melhoria da humanidade, hic et nunc

O Rito Francês é triangular e não piramidal: o Sublime Filósofo Desconhecido, titular da terceira arca da quinta ordem em nada é superior ao Aprendiz: são iguais e Irmãos por terem visto a Luz, isto é, por serem iniciados – tão-só. 

A única hierarquia existente no Rito Francês é funcional e resulta de eleições democráticas e transparentes na Loja, na Grande Dieta, no Capítulo e no Congresso. Sem instâncias secretas, nem desígnios superiores. 

Foi esta aliás a razão que levou Napoleão Bonaparte, judiciosamente aconselhado pelo Príncipe Cambacères, Grão-Mestre e Soberano Comendador do GODF a, em todos os países conquistados, impor como soberano, rei ou imperador, um familiar seu, como Grão-Mestre um general do seu exército, e a apoiar um rito diferente, menos libertário e mais hierarquizado, piramidal e não triangular, que estabelecesse hierarquias e preconizasse a respetiva autoridade. 

Os fumos da Índia na maçonaria ainda hoje se manifestam por títulos e apelações grandiloquentes, formulações bem-sonantes e ocas, e por filiações absurdas que surgiram quando a nobreza se afastou e a burguesia a investiu: a multidão de alegados Soberanos, Príncipes, Comendadores, Cavaleiros, Grandes isto e Ilustres aquilo, ultrapassa a realidade de qualquer monarquia europeia, incluindo a corte de Luís XIV. 

Refiro-me ao apócrifo e folclórico fundo musical de certas entradas solenes, que tem por único paralelismo conhecido a entrada no estádio da seleção escocesa de rugby por altura do Torneio das Seis Nações, o mesmo se podendo dizer da “filiação espiritual” dos templários alegadamente grandes humanistas não obstante o respetivo desempenho nas cruzadas… 

Embora não totalmente, o Rito Francês foi bastante preservado desta epidemia de preciosismo arrivista: por exemplo, é-se recebido mestre, e não exaltado ao mestrado. É um rito de rigor e de modéstia, desprovido de exibicionismo, porventura o menos narcísico da maçonaria. Nele não existem “misteriosos mistérios” e não se pratica a camuflagem da própria insuficiência pretextando uma pretensa hierarquia.:

 “bate à porta e abrem-ta, pergunta e respondem-te”. 

Preservemo-lo sob esta forma, meus Irmãos: assim poderemos manter nos passos perdidos os metais tão sofregamente procurados pelos recalcados da vida profana, pelos exibicionistas grandiloquentes e pelos arrivistas sectários, todos apostados em retomar as guerras do alecrim e da manjerona, numa estéril competição de egos que nada traz à Humanidade. 

Fonte: Revista Fanzine nº 3

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