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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

O DEFENSOR DA TOLERÂNCIA

O DEFENSOR DA TOLERÂNCIA 
Rodrigo Constantino

“Sabeis que a intolerância só produz hipócritas ou rebeldes”. (Voltaire)

François-Marie Arouet, mais conhecido por seu pseudônimo Voltaire, pode ser considerado um dos grandes defensores da tolerância. Nascido em 1694, viveu em uma época de muita turbulência religiosa, pouco mais de um século depois do famoso massacre de protestantes na Noite de São Bartolomeu, ocorrida em 1572 na França. Voltaire combateu veementemente o fanatismo religioso e a superstição, pregando a pluralidade das crenças e a tolerância entre todas elas. Ganhou dinheiro com toda sorte de operações, e como mancha em seu currículo encontra-se o fato de ter financiado até traficantes de escravos. Não obstante essa grave falha em sua conduta, muitas de suas idéias permaneceram válidas. 

Sir Karl Popper considerava Voltaire o “Pai do Esclarecimento”. Seu apelo pela razão foi uma importante arma contra o obscurantismo dos violentos anos da Inquisição. Ele era claramente um homem do Iluminismo: “O grande meio de diminuir o número de maníacos, se restarem, é submeter essa doença do espírito ao regime da razão, que esclarece lenta, mas infalivelmente, os homens”.

Voltaire, durante seu exílio na Inglaterra, ficara impressionado com o pluralismo religioso instituído nessa “ilha da razão”, em contraste com a situação francesa. Em 1685, poucos anos antes do nascimento de Voltaire, a religião reformada era proibida no reino da França. Foi somente em 1787 que Luís XVI decidiu-se a promulgar um edito de tolerância, em favor de seus súditos que não pertenciam à religião católica. Neste ambiente de intolerância religiosa é que Voltaire cresceu, tendo alimentado profunda antipatia pelo fanatismo. Sua escolha pelo pluralismo religioso era claro: “Quanto mais seitas houver, tanto menos perigosa cada uma será; a multiplicidade as enfraquece”. Além disso, ele entendia que “seria o cúmulo da loucura pretender fazer todos os homens pensarem de uma maneira uniforme sobre a metafísica”. 

Uma de suas frases famosas, que representa um legado para os defensores da liberdade de expressão, foi cunhada quando as autoridades suíças queimaram um livro de Rousseau, quem Voltaire jamais apreciou. Ele saiu, ainda assim, em defesa do filósofo, afirmando: “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo”. Isso Voltaire fez por alguém que ele considerava “um poço de presunção e vileza”. Eis uma mensagem que deveria ser mais bem assimilada atualmente, onde os grilhões do “politicamente correto” calam, muitas vezes, as vozes destoantes. 

Um dos livros do autor de Cândido que melhor tratam do tema da tolerância é justamente Tratado Sobre a Tolerância, escrito por inspiração do caso Jean Calas. O tribunal criminal de Toulouse condenou à morte esse homem, que acabou executado pelo suplício da roda. A família de Calas era protestante, e com certeza isso foi um dos motivadores por trás da injustiça. Todas as evidências apontavam claramente para o suicídio, mas Jean Calas foi considerado culpado por parricídio, em uma conclusão totalmente absurda. Mesmo agonizando na roda, com os membros quebrados, Calas não confessou o crime, preferindo morrer sofrendo, mas sem mentir. Foi estrangulado e seu corpo foi queimado. Depois de muitos anos, os juízes foram levados a reconhecer a falha gritante do julgamento. 

A figura de Cristo era admirada por Voltaire, mas ele gostava sempre de lembrar aos seus supostos seguidores: “Se quereis vos assemelhar a Jesus Cristo, sede mártires e não carrascos”. Para ele, a religião pura degenerou em superstição e em fanatismo, que produziram a intolerância. “O furor que inspiram o espírito dogmático e o abuso da religião cristã mal compreendida derramou sangue, produziu desastres tanto na Alemanha, na Inglaterra e mesmo na Holanda, como na França”, disse Voltaire. Mas nos demais países, a diferença das religiões não causava mais tanto problema como na terra natal do pensador. Voltaire queria então levar à luz seus concidadãos. Ele escreveu: “A filosofia, a mera filosofia, essa irmã da religião, desarmou mãos que a superstição por muito tempo havia ensangüentado; e o espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, espantou-se com os excessos a que o fanatismo o havia levado”. 

Voltaire cita vários testemunhos contra a intolerância, de figuras religiosas mesmo. “É um sacrilégio tirar, em matéria de religião, a liberdade aos homens, impedir que escolham uma divindade: nenhum homem, nenhum deus gostaria de um serviço forçado”, disse Tertuliano. “A religião forçada não é mais religião; é preciso persuadir, e não coagir”, relata Lactâncio. “Nada é mais contrário à religião do que a coerção”, afirma São Justino. “A violência é capaz de gerar hipócritas; não se persuade quando por toda parte se fazem ressoar ameaças”, escreve Tillemont. “A fé não se incute a golpes de espada”, afirma Cerisiers. Enfim, daria um enorme livro mostrar a quantidade de apelos contra a intolerância e o uso da coerção na questão religiosa. Para Voltaire, “todo dogma é ridículo, funesto; toda coação baseada no dogma é abominável”. Ordenar a crer é absurdo. 

Apesar de seus ataques muitas vezes virulentos contra algumas religiões, Voltaire não era ateu. Pelo contrário, ele abominava o ateísmo, e culpava o dogmatismo cristão e a superstição tola de muitos crentes pelo aumento da quantidade de ateus. “Um ateu argumentador, violento e poderoso seria um flagelo tão funesto quanto um supersticioso sanguinário”, ele escreve. A religião é necessária, segundo Voltaire, pois as leis protegem contra os crimes conhecidos, mas a religião protege contra os crimes secretos. Voltaire pode ser considerado um deísta, mas grande inimigo da tolice presente em muitas religiões. Para ele, “a superstição é, em relação à religião, o que a astrologia é em relação à astronomia, a filha muito insensata de uma mãe muito sensata”. 

Em seu livro O Túmulo do Fanatismo, Voltaire liga uma metralhadora giratória contra o fanatismo religioso. Logo no começo, Voltaire afirma que “um homem que recebe sua religião sem exame não difere de um boi que atrelam”. Examinar, questionar, é um dever de qualquer um que respeita a razão. Seguir de forma fanática uma crença somente porque é a crença dos pais seria algo totalmente contrário a isso. Quando se questiona quantos filhos de cristãos são muçulmanos, ou quantos filhos de muçulmanos são cristãos, tem-se uma noção melhor de como o puro acidente geográfico ao nascimento exerce influência exagerada na crença religiosa. Voltaire derruba inúmeros mitos e fábulas religiosas no livro, atacando basicamente aqueles que seguem ao pé da letra mensagens completamente inverossímeis. Mostrando como certos Evangelhos foram aceitos pela Igreja e outros não, Voltaire afirma que “o fanático adora sob um nome o que lhe parece o cúmulo do ridículo sob outro”. Ele combate também os supostos milagres atribuídos a Jesus, e condena os relatos sobre os profetas como pura fantasia. Enfim, o livro é mais munição contra o fanatismo religioso, que Voltaire sempre atacou. Ele mesmo considerou o livro “um raio que fulmina a superstição”. 

Voltaire condenou duramente o fato de a heresia ser considerada um crime, e dos mais graves ainda por cima. Ele define heresia, em O Preço da Justiça, como "opinião diferente do dogma aceito em dado local". Cita como exemplo a Igreja que impunha aos príncipes que ungia o juramento de extermínio de todos os hereges. Muitos acreditavam que atear fogo nos "infiéis" era a coisa certa a fazer. Foram criadas leis terríveis contra os hereges na França. Como exemplo, Voltaire menciona um edito promulgado em 1699 segundo o qual todo herege recém-convertido seria condenado às galés em regime perpétuo caso fosse surpreendido a sair do reino, e quem favorecesse a sua saída seria condenado à morte. Que mundo bárbaro onde alguém pode ser morto somente por conta de uma opinião religiosa!

Em 1778, já moribundo, Voltaire declarou: “Morro adorando a Deus, amando meus amigos, não odiando meus inimigos e detestando a superstição”. Em sua Oração a Deus, Voltaire faz um apelo: “Possam todos os homens lembrar-se de que são irmãos! Que abominem a tirania exercida sobre as almas, assim como execram o banditismo que toma pela força o fruto do trabalho e da indústria pacífica!”. O mundo seria, sem dúvida, um lugar mais pacífico se as mensagens de tolerância pregadas por Voltaire fossem mais escutadas. Ainda que mais de dois séculos tenham se passado, Voltaire será sempre atual. Afinal, a superstição sempre existirá, infelizmente.

Publicado em 14/05/2007
http://forum.outerspace.com.br/showthread.php?t=82658

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