Quando em maçonaria falamos de “rito”, podemos estar a referir-nos a duas realidades. Por um lado, ao Rito, maiusculizado, que identifica a tradição maçónica, ou, por outro, à dimensão vivencial, canónica, do que antropologicamente se define por rito. A minha breve comunicação centra-se nessa segunda dimensão em que é a natureza dos gestos, das palavras e dos locais que me interessa, não necessariamente as especificidades de uma tradição no que ela tem de diferenciador para com outras.
Na abordagem da ritualidade, perfilho a visão de que muito provavelmente a Humanidade começou por se exprimir religiosamente através da prática ritual, só depois veio a crença (Han, 2020). Ao tentar-se explicar primeiro a crença do que o rito, como fez Durkheim, por exemplo, está-se a encurtar a distância que separa a “atividade simbólica” da “atividade lógica” do homem (Durkheim, 2020). Ora, uma, a simbólica, alimenta a outra, a lógica; ou melhor, a lógica, qualquer que ela seja, parte de um quadro simbólico que define a forma de ler a realidade.
O poder do ritual está na força existente no seu conteúdo e na eficácia da sua comunicação (PINTO, 2020). A informação acerca do que compõe o ritual e, a interiorização dessa informação, é o motor de transmissão e de envolvimento do grupo nos símbolos do ritual.
E o fundamental, no que a uma prática ritual respeita, encontra-se, na minha leitura, na participação. Isto é, os ritos não são feitos para que a eles se assista, mas para que neles se tome parte (ELIADE, 1952). Quer dizer, só se compreende um determinado ritual participando nele; a simples observação de gestos e movimentos rituais numa lógica científica não permite aceder, de facto, à essência do ritual e da religião: trata-se de duas lógicas diferentes, mesmo que em igual suporte (a linguagem).
Quando um ritual é realizado e dirigido a uma assembleia, as mensagens rituais só poderão ser assimiladas pelo grupo se houver uma certa “doutrinação” sobre a matéria que está codificada, uma identificação automatizada, ou seja, a capacidade do ritual para atingir o seu objetivo junto daqueles a quem se dirige, a força de mobilização que é ou não capaz de transmitir, está essencialmente na competência da transmissão dessa mensagem e na preparação dos receptores para a entender.
Neste ponto, a nossa posição incide no valor intrínseco do texto do ritual, em si. Os textos consignados pelo tempo e pela cultura são património quase genético de todos os participantes no rito que neles se estrutura. Participar nesse texto, no texto declamado, ao vivenciar o ritual, na sua declamação e na sua audição, é recriar ciclicamente esse mesmo texto e os seus significados e sentidos.
Nesse momento, mais que perante um texto, com conteúdo, estamos perante forma, estamos perante uma linguagem que vale enquanto tal, pela sua natureza, pela comunicação e cognição que automaticamente se estabelece entre a comunidade que em torno desse texto se reúne. Talvez possamos falar de identidade narrativa, mais que de qualquer outra identidade individual, ou mesmo coletiva (RICOEUR, 1990). Tal como não se é maçom sozinho, mas se é reconhecido pelos Irmãos, também apenas se é maçom no quadro da participação em Loja, no Rito, em ritual.
No quadro do valor dos textos na sua relação com os gestos, recordo os distantes poemas homéricos, de mais de 2.500 anos de sentidos e de leituras. Num dos episódios mais marcantes dos poemas de Homero, um aedo é chamado a declamar, tal como sucederia em algumas noites num palácio, não maçónico, em que se reuniriam em torno do lume, os grandes, os nobres, os guerreiros e os aventureiros, aqueles que tinham novas para transmitir. O aedo, qual metáfora do poder do seu olhar, é cego neste episódio da Ilha dos Feaces da Odisseia. Mas fala, declama “novas”. É escutado.
E as “novas” poderiam ser plenamente novas ou não; aliás, a noção de Conhecimento seria, obviamente, muito diferente da nossa. Os mitos nasciam desse afastamento a um tempo concreto mediante a assunção de uma dimensão primordial, organizadora de uma ordem, de um sistema. Ouvir um aedo a declamar a sua poesia era, quer escutar novidades, num tempo em que o Saber era lento na transmissão, quer voltar a entrar dentro de conhecimentos ancestrais, já sabidos, em nada novos, mas constantemente rememorados e revalidados. Declamar a poesia era ritualizar o momento.
A poesia era verdadeiramente uma linguagem de códigos, de descoberta. Se a prosa descrevia o linear, os tratados, as contas, os registos; a poesia, com o seu ritmo, com a rima e a entoação que lhe era necessária, era o campo do que não podia ser apenas ouvido, mas tinha de ser sentido. A poesia era hermenêutica em potência, era abertura à interpretação, era convite a elaborar e a descobrir.
Não será obviamente por acaso que muitos Textos Sagrados se encontram nessa forma ritmada que faz entrar o leitor e o ouvinte numa dimensão fora da linguagem normal, num quadro de ritmicidade, numa valoração de ritual, de contacto com uma Verdade fora da compreensão imediata, uma Verdade que não advém de conhecimento por metodologia cartesiana.
A cegueira, que tradicionalmente se aplica à definição da justiça, retomando a imagem egípcia do equilíbrio da balança, não é mais que a necessidade de o conhecimento se criar sem os constrangimentos do que nos pode tolher o pensamento através dos sentidos. Ser cego não é não ver. Ser cego é ser capaz de olhar para dentro, procurando uma solidez que, sendo ilusória também ela, nos referência a ideias superiores ao tempo, em vez de ter como referência única o exterior, inevitavelmente volátil, móvel e em contínua mutação.
O Saber a que me refiro, enquadrado na realidade ritual, é em tudo próximo ao da poética: procura o que constantemente nos foge. Isto é, a capacidade de olhar para além do imediato. E o imediato é-nos dado por regras, por definições de interpretação fácil, por normas escritas numa linguagem depurada de interpretações, como se fossem elas que nos fizessem chegar a universais amplos e inquestionáveis de ética.
Se a prosa de um relatório se quer clara para que todos os leitores a absorvam exatamente da mesma forma, a poesia quer que o leitor seja o seu continuador, lendo o que a sua estética pedir e desejar, levando cada um a um novo poema que é completado no momento exato da fruição. Nada se repete, nenhum leitor é igual, nenhuma norma se sobrepõe à individualidade.
A forma como uma cor, uma forma, um gesto ou uma palavra toca em cada um de nós é exato instrumento de significação, de criação de sentidos, de intensidades e, por isso, modificador, criador, operativo.
Se a presença numa reunião com alta carga simbólica e ritual se justificasse pela alegria do reencontro de um grupo de amigos, então não seriam necessários paramentos, nem rituais de aberturas, nem de uma decoração do espaço muito própria (Han, 2020).
Participa-se num ritual porque, todos juntos, se repetem um grupo de gestos, participa-se num grupo de declamações, define-se uma noção de sacralidade centrada em princípios organizadores do mundo e da vida, uma verdadeira cosmovisão, sem que seja preciso ser religiosa, e, por isso, na assembleia é-se reconhecido pelos iguais como: Iguais (ELIADE, 1999).
Quando, por exemplo, na Maçonaria se espera que as Luzes do Templo iluminem no “mundo profano”, está-se a dar asas à mística operatividade do Rito que se espelha na vida social, familiar, profissional, mediante a hermenêutica que cada um faz dos símbolos e dos ritos, da leitura que cada um realiza dos textos, das palavras e até dos silêncios.
Obviamente, seguimos para aquilo que, ao ser reforçado nos textos constitutivos da Maçonaria é definidor do que é fundamental. Ao afirmar no artigo 2º das Constituições do Grande Oriente Lusitano, que “A forma da Maçonaria é ritualística”, está-se a fugir, em pleno quadro cultural positivista, a qualquer leitura que diga ser a maçonaria algo comparável a uma Religião, mas afirma-se a dimensão do ritual como definidora.
Chegamos o que eu julgo ser, de facto, o centro da definição da própria noção de si, fundamental na noção de sacralidade, por oposição à ideia de “profano”, na Maçonaria. E o essencial encontra-se, de facto, na dita ritualística.
Poderíamos dizer que o ritual dá a sacralidade através da definição de um tempo. O tempo do ritual tem gestos e palavras muito específicas que nos remetem para códigos e para a vivência de símbolos.
No limite, até poderíamos dizer que num ritual se define um espaço sagrado na forma se gere esse espaço, com que movimentos, com regras e com ritmos, qual declamação regida por uma métrica poética (PINTO, 2020). Mas não creio que seja essa a forma mais interessante de nos aproximarmos da ideia de sacralidade.
À semântica única que une quem participa num ritual, permitindo participar no rito, acresce a hermenêutica diversa que diferencia cada um como indivíduos. E esta dinâmica, esta tensão, é, ao mesmo tempo, coesão e diversidade. A Fraternidade é como que recriada em todo o momento em que se vivencia o ritual lado a lado, seja na Loja Maçónica, seja na oração em congregação numa Mesquita, nessa natureza em que o comum nos permite participar, entendendo, e o que nos é único nos dá a capacidade de liberdade, de entendimento irrepetível. No limite, o rito, na sua repetição, é uma máquina de fazer Igualdade que dilui as diferenças do tempo e do espaço fora do ritual, do profano.
Hermeneuticamente ficamos muitíssimo mais próximos, não apenas ao fazer gestos iguais, que nos ligam, mas ao definir entendimentos que o ritual consigna e tornam cada um mais forte. E é-se mais forte -no ritual fica-se mais forte-, porque em liberdade nos unimos e nos individualizamos dentro de uma noção de sacralidade. E esta máquina de fazer Fraternidade que é o ritual, é reforçada porque ele se alimenta semanticamente do símbolo, não apenas dogmatizado numa definição que todos assimilemos como única, mas numa liberdade de cada um ler esse momento com o seu entendimento, na sua racionalidade.
De fato, um ritual, ao definir uma leitura, pode dizer-nos, se a interpretação for pobre, que essa é a leitura correta; mas diz-nos, também, pela afirmação de um caminho, os sentidos que são todos os outros – no limite, uma regra é uma bengala para se perceber como a não seguir.
E, neste momento, caímos no que me parece ser o fundamental da relação entre a sacralidade possibilitada pelo ritual: a noção de Sabedoria. Os símbolos são, acima de tudo, vividos, seja na tal formulação padronizada, seja na Liberdade interpretativa de cada um (BATESON, 2008).
Este é o caminho para entender como o ritual é um momento e corresponde a um espaço de Sabedoria. Com uma semântica própria, com simbólica própria e vivida de forma única por cada um, no ritual conjugam-se o que de mais fundamental tem a vivência: a complexidade da junção de duas naturezas aparentemente distintas: a solidez do que está definido e não pode ser alterado, e o fluido que é a vivência individual. Se um ritual são um grupo de normas e de definições, participar num rito é viver essas normas mediante a leitura pessoal. E somos livres na possibilidade hermenêutica que surge na repetição do ritual (HAN, 2020).
O Conhecimento de um ritual não se faz por se decorarem as frases, quais deixas de teatro, ou por se terem os paramentos corretos. Também o é, mas não apenas. Conhece-se um ritual, como a Antropologia já o afirmou há muitos anos, vivenciando-o, sendo participante, sendo, no fundo, oficiante – ao participar, nem que seja com um único gesto num ritual, é-se já oficiante.
* Paulo é Doutor em Estudos Culturais. Diretor Geral Acadêmico do Grupo Lusófona/Brasil. Coordenador da área Ciência das Religiões da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa/Portugal. Áreas de atuação: esoterismo, judaísmo, maçonaria, espiritualidades.
Fonte: Revista Relicário • Uberlândia • v. 8 n. 16 • jul./dez. 2021.
Referências
BATESON, Gregory. Vers une ecologie de l ́esprit. Paris: Essais, 2008. DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ELIADE, Mircea. Historia de las creeencias y de las ideas religiosas II. De gaumata Buda al triunfo del Cristianismo.Barcelona: Paidos, 1999. ELIADE, Mircea. Images et symboles. Essais sur le symbolisme magico-religieux. Paris: Gallimard, 1952. HAN, Byung-Chul. Do desaparecimento dos rituais. Lisboa: Relógio d ́Água, 2020. PINTO, Paulo Mendes. Trabalhar a Pedra. Textos Maçónicos e de inspiração Maçónica.Lisboa: Europress, 2020. RICOEUR, Paul. Soi-mêmme comme un autre.Paris: Seuil, 1990.
Fonte: https://opontodentrocirculo.com
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