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sexta-feira, 2 de setembro de 2022

A BUSCA PELO SAGRADO: O MITO DO HERÓI E OS RITOS DE PASSAGEM

Eu saí da minha terra Me deu lição verdadeira Por ter sina viageira Coragem num tá no grito Com dois meses de viagem E nem riqueza na algibeira Eu vivi uma vida inteira E os pecado de domingo Saí bravo, cheguei manso Quem paga é segunda-feira Macho da mesma maneira Estrada foi boa mestra (Capoeira do Arnaldo – Paulo Vanzolini)

O rito de passagem ou de iniciação é um rito que marca a transição de um status social ou sexual a outro. Ritualmente reproduz o nascimento, a saída do bebê da barriga da mãe e a entrada para uma nova realidade. Assim como no nascimento, o rito de passagem exige o desprendimento, esforço, sacrifício. Em algumas culturas tais ritos são acompanhados de escarificações e privações[1].

Em 1909, Otto Rank (1884-1939) pesquisador, psicanalista, colaborador e colega de Sigmund Freud, em sua obra Der Mythus von der Geburt des Helden (O Mito do Nascimento do Herói) analisa os mitos de Sargon, Moisés, Karna, Édipo, Paris, Telephus, Perseu, Gilgamesh, Cyrus, Tristan, Romulus, Hercules, Jesus, Siegfried e Lohengrin. Em sua análise ele destaca símbolos recorrentes a todos esses mitos, tais como a água, a luta para nascer, mesmo contra toda adversidade, e a vitória do herói.

Otto Rank ressalta que para compreender os mitos é necessário adentrar no reino da imaginação. 

“Numerosos investigadores têm enfatizado que a compreensão da formação do mito requer o retorno para a sua derradeira fonte, a faculdade da imaginação individual”[2]. 

A compreensão do mundo imagético é essencial para compreender o mito e para Otto, a fonte do mundo imagético é a criança.

Comentando sobre o livro de Otto Rank, O Mito do Nascimento do Herói, concorda que todos nós somos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas, vivendo no fluido amniótico, para assumirmos, daí por diante, a condição de mamíferos que respiram o oxigênio do ar, e que, mais tarde, precisarão erguer-se sobre os próprios pés. Esta é uma enorme transformação, e certamente, um ato heroico, caso fosse praticado conscientemente[3].

Os mitos são frutos dos dramas infantis, segundo Otto Rank. No caso do mito do herói, este decorre do drama do incesto. O filho se rebela contra o pai para conquistar o amor da mãe. Esta é a tese do seu mentor, Sigmund Freud, que irá chamar de complexo de Édipo.

A rebelião do filho contra o pai pode não ser apenas para conquistar a mãe, pode ser também para conquistar a sua independência. A eliminação do ego infantil é a maior das lutas na passagem do jovem para o adulto. Os embates internos são muito mais difíceis e complicados do que combater outro ser humano.

“Os rituais das primitivas cerimônias de iniciação têm sempre uma base mitológica e se relacionam à eliminação do ego infantil, quando vem à tona o adulto, seja menina ou menino.”[4]

Tanto os meninos quanto as meninas experimentam mudanças fisiológicas tão intensas a ponto de provocarem uma mudança psicológica transfiguradora, ou seja, a passagem não é apenas fisiológica, é sobretudo mental. O embate mental independe do sexo, ou seja, é tão difícil para o menino quanto para a menina fazer a transição para o adulto. Os ritos de passagem seriam uma forma de resolver os conflitos entre a mente e o corpo.

A independência é conquistada quando o jovem se desprende da dependência dos pais. O primeiro passo para a independência é à oposição a ordem vigente e todo herói começa como um rebelde.

“O próprio herói, como demonstrado pelo desprendimento dos pais, começa sua carreira em oposição à geração mais velha. Ele é ao mesmo tempo um rebelde, um renovador e um revolucionário. Entretanto, todo revolucionário é originalmente um filho desobediente, um rebelde contra o pai.”[5]

A oposição é um dos passos para encontrar a individualidade, mas não é o fim. Apesar da redundância, a auto-superação faz parte do “heroísmo do herói”. Isso nem sempre acontece, mas costuma fazer parte do processo.

A jornada do herói é mais profunda do que qualquer rebeldia, vai até o âmago do espírito humano, para depois retornar trazendo essa essência de vida e doá-la para a humanidade.

Para Campbell, a façanha do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa ou que sente deslocado entre as experiências normais dos membros da sociedade. Essa pessoa então parte numa jornada que ultrapassa o usual, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir seu lugar na sociedade. Normalmente, o herói perfaz-se um círculo que inicia com a partida e termina com o retorno. Essa jornada tem algo de uma busca espiritual, pois o jovem evolui de uma posição de imaturidade psicológica para a coragem da auto-responsabilidade, na passagem se morre e renasce. Esse é o motivo básico do périplo universal do herói[6].

Arnold Van Gennep (1873-1975) é um dos mais importantes folcloristas e etnógrafos franceses. Ele cunhou o termo “ritual de passagem”. Fez um estudo sistemático dessas cerimônias e dedicou uma obra a elas, “Les Rites de passage” (Os Ritos de passagem – 1909).

Van Gennep identificou três fazes nos ritos de passagem:

  • A separação, o desprendimento dos pais e do ego infantil;
  • A margem, seria a busca da autonomia, ou seja, buscar despertar as qualidades do adulto;
  • Agregação, a aquisição do domínio de si, quando o jovem retorna não mais como criança, mas como adulto.

Essa mesma estrutura está presente nos mitos de heróis e não é por acaso. Segundo Campbell, todo rito é uma encenação mítica[7]. A epopeia mítica é reproduzida no rito, somos transportados do mundo profano para o sagrado, do sobrenatural.

Para Durkheim, o sobrenatural é uma noção tida geralmente como característica de tudo que é religioso. Entende-se por isso toda a ordem de coisas que ultrapassa o alcance de nosso entendimento; o sobrenatural é o mundo do mistério, do incognoscível, do incompreensível. A religião seria, portanto, uma espécie de especulação sobre tudo o que escapa à ciência e, de maneira mais geral, ao pensamento claro[8]. Ora, seguindo essa ideia de Durkheim, o mundo imagético do ser humano faria parte do sobrenatural, pois escapa à ciência e também não faz parte do pensamento claro e, sendo parte do sobrenatural, seria objeto de estudo das religiões.

Durkheim afirma que a única forma segura e confiável de aquisição do conhecimento é a razão, quanto a isso, Bachelard discorre que o raciocínio não é a única forma de aquisição do conhecimento e fará a sua Fenomenologia Poética que abarca também a sensibilidade. O que escapa a Durkheim é que o raciocínio permite, sem dúvida, analisar os fatos, compreender a relação existente entre eles, mas não cria significado. Para que a criação ocorra, é necessário imaginar[9]. Os mitos têm um aspecto pedagógico, mas, sobretudo, eles atuam no mundo imagético, dando um sentido à vida.

O próprio Durkheim percebe a necessidade humana de criar sentido à vida, remetendo ao aspecto simbólico, imagético do ser humano, ainda que com certo desdém e que deve ser mantido à distância:

“Os homens foram obrigados a criar para si uma noção do que é religião, bem antes que a ciência das religiões pudesse instituir suas comparações metódicas. As necessidades da existência nos obrigam a todos, crentes e incrédulos, a representar de alguma maneira as coisas no meio das quais vivemos, sobre as quais a todo momento emitimos juízos e que precisamos levar em conta em nossa conduta. Mas como essas pré-noções se formaram sem método, segundo os acasos e as circunstâncias da vida, elas não têm direito a crédito e devem ser mantidas rigorosamente à distância do exame que iremos empreender. Não são os nossos preconceitos, as nossas paixões, os nossos hábitos que devem ser solicitados como os elementos da definição que necessitamos; é a realidade mesma que se trata de definir.”[10]

A posição de Durkheim de reprimir o aspecto imagético do ser humano para alcançar a “verdade pura” é um dos pressupostos do pensamento científico, nascido da Revolução Científica, movimento do século XVII, que separou a Ciência da religião, especificamente das interpretações Teocêntricas da Igreja Católica. O problema é que o cientificismo foi predominante na sociedade ocidental e “rotulou” os mitos, chamando-os de “mentiras” que se contam para crianças. A razão foi dissociada da sua verdadeira fonte, o mito. Nessa busca pelo racional o sentimento foi abafado e o ser humano ficou dividido. As consequências desse movimento darão origem à diversas crises contemporâneas, tanto individuais, quanto sociais. Em nossa sociedade os ritos perdem importância, porque são vivências profundamente emotivas e na maioria dos casos, pouco ou nada lógicos.

Segundo Gilbert Durand em sua obra L’Imagination Symbolique a postura Científica de negar o mundo Imagético é reducionista, não contempla o ser humano de forma integral, razão e sensibilidade. Não percebe que a razão nasce do Imaginário. A própria Ciência é uma Hermenêutica, uma construção mítica, que Durand irá chamar de hermenêutica redutora em contraste com as hermenêuticas instaurativas.

“A mais evidente depreciação dos símbolos que nos apresentam a história de nossa civilização é certamente aquela que se manifesta dentro dos atuais cientistas do cartesianismo. Certos, como escreveu excelentemente um cartesianista contemporâneo, não é porque Descartes recusa de fazer uso da noção de símbolo. Mas que o único símbolo para o Descartes da terceira meditação, é a consciência, ela mesma a imagem e semelhança de Deus.”[11]

A vida imagética tem um sentido próprio, mais abrangente do que a razão e quando tenta reduzi-la ao ato concreto em si, parte de seu sentido se perde.

“…na linguagem, se a escolha do signo é insignificante porque este último é arbitrário, já não acontece o mesmo com o domínio da imaginação em que a imagem – por mais degradada que possa ser concebida – é ela mesma portadora de um sentido que não deve ser procurado fora da significação imaginária.”[12]

De todos os cientistas, os Físicos são os que mais buscaram explicar a realidade tendo por base o pensamento científico. A Física Newtoniana afirmou que a realidade era concreta, absoluta e permanente. Esse pensamento perdurou durante séculos, até o aparecimento de Einstein e sua Teoria da Relatividade, quando demonstrou que o espaço e o tempo não são absolutos, eles podem ser contraídos ou expandidos, contrariando a lógica de espaço e tempo absolutos de Newton.

Nossa noção de realidade foi ainda mais afetada com as descobertas dos físicos quânticos. Estes descobriram que a matéria, aparentemente tão sólida, é constituída em seu âmago por átomos, que por sua vez são em sua maior parte enormes espaços vazios. Os elementos constitutivos do átomo têm propriedades que contradizem a razão: têm comportamento dual onda-matéria, efeitos de tunelamento, são regidos por uma incerteza intrínseca que obriga a representá-los em termos de probabilidades, entre outros efeitos que ferem o bom senso. Na frase célebre do físico quântico Niels Bohr: “Se a mecânica Quântica não lhe chocou, é porque você ainda não a entendeu.” Os físicos quânticos estão demonstrando que a realidade em sua essência não é nem lógica, nem sólida, não existindo essa concretude sonhada pelo cientificismo, pensamento que será retomado pelos cientistas do imaginário.

Na teoria do Imaginário, a realidade é interpretada, criada a partir dos mitos, ou seja, é imagética. Segundo Juremir Silva, todo imaginário é real. Todo real é imaginado. O homem só existe na realidade imagética. Não há vida simbólica fora do imaginário. O mesmo já tinha sido percebido por Jacques Lacan no que se refere à sexualidade. Tudo acontece no imaginário: sexo, preconceitos…. O concreto é empurrado, impulsionado e catalisado por forças imagéticas. Nisso não se esconde um velho idealismo, travestido de novo, em função de uma renovação de terminologia, mas transparece uma constatação antropológica: o ser humano é movido pelos imaginários que engendra. O homem só existe no imaginário[13].

A frase célebre do Buda Sidarta Gautama de que nós fazemos a nossa própria realidade, será amplamente aceita na teoria do Imaginário. A realidade não é fruto dos fatos, mas das interpretações que damos a estes. Da mesma forma a eficácia do ritual, não está no ato em si, mas do sentido que damos a ele, sua força vem da crença no transcendente. O que nos remete a noção de sagrado e profano.

Para Durkheim, o sagrado e o profano são dois mundos que nada têm em comum.

“Não existe na história do pensamento humano um outro exemplo de duas categorias de coisas tão profundamente diferenciadas, tão radicalmente opostas uma à outra. A oposição tradicional entre o bem e o mal não é nada ao lado desta; pois o bem e o mal são duas espécies contrárias de um mesmo gênero, a moral, assim como a saúde e a doença são apenas dois aspectos diferentes de uma mesma ordem de fatos, a vida, ao passo que o sagrado e o profano foram sempre e em toda parte concebidos pelo espírito humano como gêneros separados, como dois mundos entre os quais nada existe em comum.”[14]

Durkheim explana que o homem nasce no mundo do profano e a sua passagem para o mundo do sagrado se dá por meio do ritual de passagem. Em que ele irá morrer no mundo do profano para renascer no mundo do sagrado. É o mito da morte e ressurreição do herói. A passagem para ele implica numa completa metamorfose.(grifo do blog)

“Ora, essa mudança de estado é concebida, não como o simples regular desenvolvimento de germes preexistentes, mas como uma transformação totius substantiae. Diz-se que, naquele momento, o jovem morre, que a pessoa determinada que ele era cessa de existir e que uma outra, instantaneamente, substitui a precedente. Ele renasce sob uma nova forma. Considera-se que cerimônias apropriadas realizam essa morte e esse renascimento, entendidos não num sentido simplesmente simbólico, mas tomados ao pé da letra.”[15]

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) retoma a ideia de divisão no rito de passagem, mas descarta a ideia do transcendente ou do sagrado e analisa sob uma ótica prática, social. Os ritos de passagem teriam uma função social, a de separar os iniciados dos não-iniciados. Bourdieu propõe que os ritos de passagem deveriam ser chamados de ritos de legitimação, ou ritos de consagração ou ritos de instituição. Porque não é a passagem que importa, mas sim, a instituição da ordem estabelecida, que obriga o indivíduo a viver segundo as expectativas sociais ligadas à sua categoria[16].

Os ritos têm uma função social ligados à praticidade da vida, mas tentar explicar a sociedade apenas pela praticidade ou função social é esquecer que a sociedade é fruto dos mitos que engendra. Como já tinha observado Max Weber:

“Cada tentativa de explicação [do racionalismo ocidental] deve, reconhecendo a importância fundamental do fator econômico, levar em consideração, acima de tudo, as condições econômicas. Mas, ao mesmo tempo, não se deve deixar de considerar a correlação oposta… As forças mágicas e religiosas e as ideias éticas de dever nelas baseadas têm sempre, no passado, entre as mais importantes influências formativas de conduta.”[17]

Weber dedicará sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo para demonstrar como a influência de certas ideias religiosas afetou o desenvolvimento de um  espírito econômico[18]. As ideias religiosas que Weber se refere, são os mitos que aquele grupo criou e a que seguem. A razão, os atos conscientes são dependentes dos mitos que a norteiam. O mito nasce do Imaginário, e este tem uma significação própria, independente da razão.

O Desencantamento do Mundo, conceito de Max Weber, abordado em sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo também contribuiu para o enfraquecimento dos ritos de passagem. O desencantamento do mundo é a perda da crença no sobrenatural e na magia. Os ritos de passagem tornaram-se mais um mero reconhecimento do esforço desprendido pelo indivíduo do que o veículo de transformação interior.

“Tão grande processo histórico no desenvolvimento das religiões – a eliminação da magia do mundo, que começara com os antigos profetas hebreus e, juntamente com o pensamento científico helenístico, repudiou todos os meios mágicos para a salvação como sendo superstição e pecado, atingindo aqui [nos Calvinistas] a sua conclusão lógica.”[19]

A salvação não virá por milagre, ação do sobrenatural, mas pelo esforço próprio, o ascetismo protestante, que prioriza as obras materiais em oposição ao metafísico.

“Para o católico, a absolvição de sua Igreja era a compensação para as suas próprias imperfeições. O sacerdote era um mágico que fazia o milagre da transubstanciação e que tinha em suas mãos as chaves da vida eterna… Ele distribuía redenção, esperança de graça, certeza de perdão, garantindo assim o relaxamento daquela tremenda tensão à qual o calvinista estava condenado por um destino inexorável, que não admitia mitigação. Ele não poderia esperar o perdão pelas horas de fraqueza…”[20]

As perdas da crença no sobrenatural e na magia mudaram não apenas a nossa percepção do mundo, mas também a forma como lidamos com ele, com o outro e com nós mesmo. Mudou as nossas concepções míticas.

“Uma vez que o ascetismo se encarregou de remodelar o mundo e nele desenvolver seus ideais, os bens materiais adquiriram um poder crescente e, por fim, inexorável sobre a vida do homem, como em nenhum outro período histórico.”[21]

A perda da função imagética de nossa sociedade dessacralizou os ritos de passagem, dos quais, desembuídos do seu sentido primordial, restam apenas a forma ou formalidade.

A perda do sentido do rito de passagem pode estar no fato de não haver marcas definidas da transição do jovem para o adulto, como assinala Martine Segalen:

“A razão profunda do desaparecimento desses rituais também diz respeito ao fato de a idade da juventude não ser mais conquistada de repente, como outrora. A passagem se estende indefinidamente, sem que seja possível marcar com clareza um ‘antes’ e um ‘depois’, uma vez que os momentos de se adquirir o direito à sexualidade, à independência econômica e residencial e, mais amplamente, ao estatuto de adulto não coincidem mais.”[22]

Mircea Eliade, em sua obra O Sagrado e o Profano, fala que para o homem moderno o nascimento, o casamento e a morte não passam de acontecimentos de âmbito individual ou familiar, com a exceção de celebridades ou chefes de Estado. Numa perspectiva a-religiosa da existência, todas as passagens perderam seu caráter ritual, quer dizer, nada mais significam além do que mostra o ato concreto de um nascimento, de um óbito ou de uma união sexual oficialmente reconhecida[23].

Nas sociedades antigas os ritos de passagem eram um grande evento. Por exemplo, a união sexual era sagrada. A iniciação sexual dos gregos se dava nos templos e eles chamavam o casamento de télos, a consagração, e o ritual nupcial assemelhava-se ao dos mistérios nos templos. Os egípcios e o maias eram iniciados nos templos através das sacerdotisas, que na Grécia se chamavam Hieródulas e em Roma, Vestais. Nessas sociedades os jovens eram conduzidos aos templos para sua iniciação sexual.

As iniciações dos nossos índios Tupinambás se constituíam de rituais dolorosos em que toda a tribo participava. Este é um ponto importante, mesmo que as provas nos rituais sejam difíceis e dolorosas, a tribo (no sentido de grupo), e inclusive entidades sobrenaturais, acompanham o neófito, que é assistido em sua passagem. A participação da tribo significa: “Você não é o primeiro, nem será o último, essa passagem é difícil e estamos aqui para lhe ajudar, agora você terá que ser forte”. Se o neófito conseguir vencer as provas do ritual, significa que ele está pronto para assumir as suas novas responsabilidades.

No passado, a iniciação sexual era acompanhada por toda a comunidade através dos rituais. Décadas atrás, era costume o pai levar seu filho para o prostíbulo e ficar do lado de fora esperando o resultado. Talvez essa não seja a melhor forma de fazer a passagem, mas o fato é que a figura paterna estava presente e acompanhava o jovem nessa iniciação. Após o seu primeiro encontro com a meretriz o jovem tornava-se adulto, mas não é o ato sexual em si que importa e sim as transformações psicológicas trazidas por ele e que, de certa forma, remonta ao mundo imagético, à criação mítica da imagem que cada um tem do que é ser jovem e do que é ser adulto. Afinal o que diferencia um jovem de um adulto? A partir daquele momento o jovem deixava o seu mundo infantil e adentrava no mundo dos adultos.

Em nosso tempo atual, não há um momento definido em que o jovem deixa o seu mundo adolescente para assumir o adulto. É possível manter apegos infantis mesmo depois de casado e com filhos. Em nossa sociedade contemporânea os jovens são deixados à mercê de si próprios para fazerem seu ritual de passagem sozinhos, quando quiserem, como se fosse algo natural. O peso psicológico dessa passagem é grande, as migrações de uma fase a outra não acontecem de forma natural. O resultado é que o a passagem acontece de forma banal e sem assistência. Nosso herói está sozinho e o sagrado foi banalizado.

Autor: André Miele Amado

Fonte: Associação Brasileira de História das Religiões

Notas

[1] – Como retratam em suas obras os pesquisadores Arnold Van Gennep, Victor Tuner, Jacques le Goff, Philippe Laburthe-Tolra e Jean-Pierre Warnier

[2] – RANK, Otto. The myth of the birth of the hero, pg. 66

[3] – CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito, pg.132

[4] – CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito, pg. 147

[5] – RANK, Otto. The myth of the birth of the hero, pg. 95

[6] – CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito, pg.131, 132

[7] – CAMPBELL, Joseph. O Poder do mito, pg. 113

[8] – DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália, pg. 5

[9] – PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação a Teoria do Imaginário, pg.12

[10]  Ibid, pg.4

[11] – DURAND, Gilbert. L’Imagination Symbolique, pg.23

[12] – DURAND, Gilbert. Estruturas Antropológicas do Imaginário, pg.28

[13] – SILVA, Juremir Machado da. Tecnologias do Imaginário, pg.1

[14] – DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália, pg.22

[15]  Ibid, pg.23

[16] – SEGALEN, Martine. Ritos e Rituais Contemporâneos, pg.50

[17] – WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo, pg.32

[18]  Ibid, pg. 32

[19] – WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, pg. 83

[20]  Ibid, pg. 91

[21]  Ibid, pg.135

[22] – SEGALEN, Martine. Ritos e Rituais Contemporâneos, pg. 67

[23] – ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, pg. 151

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DURAND, Gilbert. “As Estruturas Antropológicas do Imaginário”. SP: Martins Fontes, 3° edição, 2002. DURAND, Gilbert. “L’imagination symbolique”. França: Presses Universitaires de France, 3 edição, 1976. PITTA, Danielle Perin Rocha. “Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand”. RJ: Atlântica Editora, 2005. DURKHEIM, Émile. “As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália”. SP: Martins Fontes, 3° edição, 2003. WEBER, Max. “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. SP: Martin Claret, 2006. CAMPBELL, Joseph. Bill Moyers. “O poder do mito”. SP: Palas Athena, 21° edição, 2003. SEGALEN, Martine. “Ritos e rituais contemporâneos”. RJ: FGV, 2002. SILVA, Juremir Machado da. “Tecnologias do imaginário: esboços para um conceito”. Texto integrante da pesquisa em desenvolvimento “Rede de idéias: tecnologias do imaginário e comunicação.” RANK, Otto. “The myth of the birth of the hero: a psychological interpretation of mythology”. Publicado no Nervous and Mental Disease Monograph Series No. 18, The Journal of Nervous and Mental Disease Publishing Company, New York,1914. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano; trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Fonte: https://opontodentrocirculo.com

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