Páginas

PERGUNTAS & RESPOSTAS

O “Perguntas & Respostas” que durante anos foi publicado no JB News e aqui reproduzido, está agora no “Blog do Pedro Juk” . Para visita-lo ou tirar suas dúvidas clique http://pedro-juk.webnode.com/ ou http://pedro-juk.blogspot.com.br

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

TODOS DANÇAMOS EM CÍRCULOS

TODOS DANÇAMOS EM CÍRCULOS
José Maurício Guimarães

O mundo se extingue para voltar a criar-se? A eterna ampulheta da existência será sempre virada a cada vez e nós com ela? Estamos dançando em círculos?

Para entendermos o que acontece hoje, nada melhor do que uma boa olhada na História. Em 1927, Sigmund Freud escreveu em ‘O futuro de uma ilusão’: “Quanto menos as pessoas sabem do passado e do presente, tanto mais impreciso será o juízo que farão sobre o futuro”.

Não invento nada do que escrevo; busco informações nos meus estudos e, para este artigo, reli parte dessas fontes que considero confiáveis e cito (permitam-me dispensar o rigor bibliográfico):

1 - “L'élection du pape Jean XXII”. Revue d'histoire de l'Église de France de Guillaume Mollat, 1910;

2 - “Atrás das portas fechadas: Uma história das eleições Papais” de Frederic J Baumgartner, 2003;

3 - “Dicionário Oxford dos Papas”, de John Norman Davidson Kelly, 1986;

4 - “The beginnings of modern Europe (1250-1450)” de Ephraim Emerton, 1917;

5 - “Boniface VIII en procès. Articles d'accusation et dépositions des témoins”, editado por Jean Coste, 1995.

6 - “The Catholic Encyclopedia”: http://www.newadvent.org/cathen/

.......

Por volta de 1309, o Papa Clemente V transferiu a sede da Igreja para a França e fixou sua residência num mosteiro dominicano de Avignon. Poucos católicos sabem que o episódio de Avignon durou mais de setenta anos. Nesse período foram Papas: Clemente V, João XXII, Bento XII, Clemente VI, Inocêncio VI, Urbano V e Gregório XI. Vale a pena lembrar que naquela época não se falava em “Vaticano”, pois essa denominação, como cidade-estado, deve-se a Benito Mussolini que assinou com o Cardeal Pietro Gasparri o Tratado de Latrão em 1929. Só a partir dessa data é que a Itália reconheceu a soberania da Santa Sé “no Vaticano”, declarado Estado soberano, neutro e inviolável. A palavra Vaticano vem da mitologia, as entidades pagãs, vaticinium− deuses da predição e do oráculo – e nome de uma das sete colinas de Roma onde se reuniam magos, feiticeiros e o Circo de Nero).

Voltemos às vacas frias do Século XIV: Avignon, então sede da Igreja, permaneceu como área e jurisdição de Nápoles até 1348 quando outro Papa, Clemente VI, comprou o território de Joana I de Nápoles por 80.000 florins de ouro. Os católicos daquele tempo (e mesmo os de hoje) não imaginavam o que representassem esses 80.000 florins de ouro − nem como a Igreja amealhou essa fortuna. Se fosse hoje, a internet e o Google esclareceriam tudo e os franceses sairiam às ruas para protestar. Mas naquele tempo só os nobres e o clero sabiam ler. As notícias andavam a cavalo, levavam meses para irem de um lugar a outro. Os católicos de hoje – atentos que estão à fé e ao noticiário internacional − devem estar se perguntando sobre esses arranjos entre a Igreja e a França durante as gestões dos pontífices Clementes de um lado, e o reis da França de outro. Vamos aos fatos.

Em 1304, morto o Papa Bento XI, os Cardeais organizaram um Conclave. Entre 13 de julho daquele ano e 5 de junho de 1305 – portanto, quase um ano − ficaram trancafiados para eleger novo Papa. Participaram desse conciliábulo quinze Cardeais divididos em duas facções: os pró-franceses e os bonifacianos que desejavam manter a tradição de um Papa italiano. A ala pró-francesestinha cinco Cardeais e o partido maior, os bonifacianos, dez eleitores. Durante os primeiros meses, os dois lados votaram por seus líderes, mas brigas internas provocaram subdivisões e o desespero tomou conta do ambiente.

O Cardeal Raymond Bertrand de Got, favorito da França e arcebispo de Bordeaux, queria exatamente isso: divisões e desespero. Nascido numa comuna francesa da Aquitaine, Raymond era filho do Cardeal francês Bérard de Got, senhor de Villandraut – família habituada à violência, cheios de astúcia e empáfia. Raymond era amigo de infância do rei Filipe IV.

Raymond começou a sondar os Cardeais de ambos as facções. Jogou uns contra os outros e manteve-se à margem do processo eleitoral fingindo ter se tornado bonifaciano. Com a falsa aparência de conciliador, atraiu a atenção dos italianos mais velhos para o discurso francês.

O rei Filipe IV, por sua vez, nutria intenções urgentes no sentido de eleger um Papa não italiano. O antecessor, Bento XI, foi o italiano Niccolò Boccasini, era de Treviso na Perusia. Antes dele, Benedetto Gaetani (Bonifácio VIII), nascido em Anagni, a sudeste de Roma; antes ainda, foram Papas: os italianíssimos Pietro Angeleri (Celestino V), nascido de modestos camponeses do monte Morrone, no centro da Itália; Girolamo Masei (Nicolau IV), de Ascoli, comuna italiana da Apulia; antes ainda, Giacomo Savelli (Honório IV), pertencente a uma família romana... e assim por diante até o longínquo Clemente I, judeu italiano nascido em Roma, no ano 35 da era Cristã.

− Chega de Papas italianos!, pensava Filipe IV.

Esse Filipe IV vocês já imaginam quem era: sim, meus caros watsons! – era aquele Filipe bem conhecemos pela alcunha de Filipe, o Belo.

E foi assim que Raymond Bertrand de Got se tornou Papa Clemente V. A demora de quase um ano nesse Conclave deveu-se às muitas movimentações havidas na Europa católica para que uma enorme soma de riquezas em ouro fosse transferida da França para os porões da Catedral de Perugia onde se realizava o Conclave.

− Elejam o meu amigo Raymond Bertrand!, era a ordem de Filipe.

Os bonifacianos, assim como outros renitentes foram comprados e ainda sobrou muito ouro para serenar bispos e Cardeais de outras partes do continente e posteriormente comparar Avignon de Joana I por 80.000 florins de ouro. Simples assim.

Não sei se naquela época usavam a fumacinha branca para anunciar a feliz escolhera de um novo Papa. Também não sei se já existia um camerlengo de óculos que chegasse à janela e, na falta de microfone e alto-falante, gritasse:

“Annuntio vobis gaudium magnum; habemus Papam: eminentissimum ac reverendissimum dominum, dominum Gouth, sanctæ romanae ecclesiæ cardinali Bertrand qui sibi nomen imposuit Clemens!” (tradução: “anuncio-vos uma grande alegria; temos um Papa: o eminentíssimo e reverendíssimo senhor, senhor Gouth, Cardeal da santa Igreja romana Bertrand, que se impôs o nome de Clemente!”)

Mas sabemos que, no dia seguinte, os Cardeais pediram ao novo Papa que viajasse a Roma para ser coroado. Mas Clemente preferiu viajar para Lyon, ao sul de Paris, onde foi coroado em 4 de novembro de 1305 na presença de seu amigo íntimo Filipe IV, o Belo.

Mesmo tendo sido a França proclamada “filha dileta da Igreja”, pouco tempo depois dessa coroação Filipe apresentou a cobrança pelos favores: exigiu que Clemente condenasse a memória do Papa Bonifácio VIII − que seu nome fosse riscado da lista dos Papas; que seus ossos fossem desenterrados e queimados; que suas cinzas fossem jogadas ao vento e que fosse declarado blasfemo, herege e imoral. Entre outras coisas, Filipe e o papado de Avignon não podiam conviver com o fantasma do vetusto Bonifácio VIII, autor dos cânones “Regulae iuris”, obra jurídica reconhecida até hoje na análise formal de leis eclesiásticas. Bonifácio VIII também fundara a Universidade “La Sapienza” de Roma – todo esse conhecimento incomodava aos que usurpavam o Trono de São Pedro.

Não são poucos os comentaristas que deduzem daquela transferência de ouro da França para a Catedral de Perugia o motivo das penúrias financeiras em que Filipe se viu envolvido. Foi obrigado a desvalorizar várias vezes a moeda e recrudesceu a perseguição aos judeus para tomar-lhes os bens. Finalmente, sob o pretexto de financiar guerras, Filipe recorreu a empréstimos junto aos Templários e tornou-se devedor de uma quantia que jamais poderia quitar. Para apaziguar o tesoureiro da Ordem, pediu filiação ao Grão-Mestre da Ordem, Jacques Burgundus de Molay. Narram as tradições que um noviço, diácono do Templo, foi selecionado para receber o Rei, mandando-lhe ficar de joelhos. Assim que Filipe fez a genuflexão, o jovem diácono simplesmente deu-lhe as costas e informou que seu pedido de admissão na Ordem fora negado pelo Grão-Mestre. Abstenho-me de transcrever aqui todos os palavrões que Filipe seguramente pronunciou em francês, italiano, grego, latim, occitano, bretão e basco – mesmo porque minhas pesquisas não se atêm à escatologia.

Passado o faniquito, acabados os chiliques e concluídos os fricotes, o Belo Filipe imaginou uma saída. Usando sua hegemonia sobre o Papa, ordenou que a Ordem dos Templários fosse extinta e confiscados seus bens. Para isso, ele e o Papa Clemente puseram em movimento uma estratégia de calúnias acusando os Templários de heresias, imoralidade, sodomia e outros crimes, pois a boca fala daquilo que está cheio o coração. Nisso foram secundados pelo nobre francês Esquin de Floyran, que se dizia iniciado na Ordem e circulava pela Europa fazendo fofocas, especialmente na corte de Tiago II de Aragão. Eram as fake news medievais, “fausses nouvelles”, diriam hoje os bondosos franceses.

O resto da história nós todos conhecemos. Uma sentença real, redigida no dia da exaltação da Santa Cruz, mandou aprisionar todos os Cavaleiros Templários que estivessem em território francês. Era uma sexta-feira 13 (outubro de 1307). Seguiram-se sete anos de perseguições e penas brutais. No dia 18 de março de 1314 foi armada uma fogueira diante do palácio de Filipe IV onde foram queimados o Grão-Mestre Jacques de Molay e o Preceptor da Normandia, Geoffroy de Charnay.

Narram as crônicas que o vento soprava a fumaça até aos balcões do castelo onde estavam Filipe e sua corte. Alguém teria reclamado do forte odor da carne queimada, ao que Filipe ponderou:

− Senhores, vamos para o salão de banquetes; lá a carne assada cheira melhor.

E todos riram aliviados.

MORAL DA HISTÓRIA:

As civilizações se extinguem para voltarem a criar-se. A eterna música que ensurdece a existência é tocada outra vez; e todos dançam. Deve ser por causa daquelas amizades bizarras entre a França e o Papa de Avignon que as crianças francesas ainda cantam:

“Sur le pont d'Avignon, on y danse, on y danse. Sur le pont d'Avignon, on y danse, tout en rond. Les bell's dam's font comm' ça, les beaux messieurs font comm' ça, ... les cordonniers font comm' ça et puis encor' comm' ça.” (“Na ponte de Avignon, alguém dança. Na ponte de Avignon, dançamos todos em círculos. Mulheres lindas fazem assim, belos cavaleiros fazem assim, os sapateiros também fazem assim e tudo começa de novo...”)

Nenhum comentário:

Postar um comentário