Zilmar Antunes
Jornal Egrégora, dez/fev. 2003
Para a maioria das pessoas de hoje, qualquer menção à Inquisição sugere a Inquisição da Espanha. Ela, como existiu na Espanha e em Portugal, tinha de prestar contas tanto à Coroa quanto à Igreja.
A Inquisição existiu e atuou em outras partes. A Inquisição Papal ou romana diferiu daquela da Península Ibérica. Ao contrário de suas correspondentes ibéricas ela não tinha de prestar contas a nenhum potentado secular. Atuando por toda a maior parte do resto da Europa, só tinha aliança com a Igreja.
Criada no século XIII, predatou a Inquisição espanhola em 250 anos. Também durou mais que as correspondentes ibéricas. Enquanto a Inquisição na Espanha e Portula se achava extinta na terceira década do século XIX, a papal ou romana sobreviveu.
No verão de 1206, um ano e meio antes de ser pregada a Cruzada Albigense, o Bispo de Osma, no norte da Espanha, passava pelo sul da França na volta de uma visita a Roma. Era acompanhado na viagem por um monge espanhol chamado Dominic de Guzmán, subprior dos monges da catedral de Osma. Filho de um nobre menor castelhano, Dominic tinha uns trinta e seis anos na época. Estudara durante dez anos na Universidade de Valencia e era conhecido por seus dons retóricos, capacidade nos debates e disputas. Três anos antes fizera sua primeira viagem à França, e a ameaça representada pela heresia cátara ali lhe causara grande indignação.
Admitem que Dominic foi muitas vezes chamado a julgar suspeitos de catarismo, para convertê-los à Igreja ou se a tentativa falhasse, mandá-los para as chamas. Ele assistiu à queima de inúmeros herejes, e parece ter acomodado muito facilmente a sua consciência essas mortes. Não surpreende que se tornasse íntimo amigo pessoal, confidente e conselheiro do implacável comandante militar da cruzada, Simon de Montfort, e o acompanhasse em sua trilha de carnificina e destruição.
Com a sua morte em 1221 e rápida canonização, Dominic fundou uma organização que se transformou na base da Inquisição, formalmente inaugurada pelo Papa Gregório IX uma década após a morte do santo. Uma das mais infames instituições criadas pela assim chamada civilização Ocidental, a Inquisição foi responsável pela tortura e morte de centenas de milhares de pessoas, a maioria inteiramente inocentes das acusações formuladas contra elas. Tendo alcançado seu apogeu no século XV na Espanha sob Torquemada, a Inquisição estendeu seu braço sanguinário para o Novo Mundo e, além, até que finalmente perdeu se nome em 1908.
Os Cavaleiros Templários invejavam os Cavaleiros Teutônicos, a Ordem irmã, que embora menos poderosa, havia estabelecido um principado praticamente independente na Prússia e no Báltico, muito a nordeste, bem além do alcance de qualquer autoridade papal aplicável. Os Templários sonhavam em criar um principado semelhante para si, porem mais próximo do núcleo da atividade européia. A perspectiva de um estado templário autônomo e auto-suficiente em seu quintal não deve ter deixado o rei francês dormir muito tranqüilamente. A 14 de setembro de 1307, despacharam-se por conseguinte cartas a autoridades reais em toda a França, instruindo-as a prender, na sexta-feira 13 de outubro seguinte, todos os Templários em sua jurisdição. O pessoal da Ordem deveria ser mantido em severa guarda e confinamento solitário, e depois levado um por um perante os comissários da Inquisição. Cada um ouviria a leitura formal das acusações contra ele e a cada um se prometeria perdão se confessasse culpado das acusações e retornasse ao seio da Igreja. Se um Templário se recussasse a confessar, seria enviado o mais prontamente possível ao Rei. Enquanto isso, toda a propriedade da Ordem seria sequestrada e compilado um abrangente inventário de todos os bens e posses.
Seguiram-se sete anos de interrogatórios, torturas e execuções, pontilhados por julgamentos e retiradas de confissões. Em 1310, quase 600 templários franceses ameaçaram retirar suas confissões e defender a Ordem junto ao Papa. Cerca de setenta e cinco deles foram queimados pela Inquisição como hereges e relapsos. Finalmente a Ordem do Templo foi oficialmente dissolvida pelo Papa, e a 19 de março de 1314, dois de seus mais altos dignatários - Jacques do Molay, o Grão-Mestre Geral, e Geoffroy de Charnay, seu Grão-Mestre Adjunto - foram assados até a morte em fogo brando numa ilha do sena.
A guerra civil abateu-se então sobre a Inglaterra, e a repressão religiosa mais uma vez levantou a feia cabeça sob o governo de Oliver Cromwell e dos puritanos. Apesar de muitos dos exércitos de Cromwell serem maçons, a Maçonaria como um todo manteve-se discreta. Muitos escritores afirmam que essa época de repressão e a sucessão hanoveriana que seguiu algumas décadas depois explicam porque a Maçonaria inglesa durante os primeiros 150 anos de sua existência aberta, o movimento foi de fato muito político, pois suas raízes brotaram de antigas guildas e famílias unidas por laços particularmente fortes, descendência comum e jurada lealdade à Casa de Stewart. Essa tradição foi iniciada séculos antes, quando as cartas de direitos de St. Clair para as guildas da Escócia reconheceram o patrocínio e a proteção a elas dispensados pela coroa.
A Maçonaria acabou por espalhar-se para a França, no outro lado do Canal, com os embaixadores e plenipotenciários da coroa britânica. Quando o monarca Stewart foi exilado em 1691, fugiu para a França acompanhado por um grande séquito. Qualquer movimento maçônico ali, originário da Campagnonnage, recebeu então um enorme reforço de maçons que derivavam seu conhecimento, ritos e rituais da Escócia, e não da Inglaterra. Nos anos seguintes, a Maçonaria passou a proliferar rapidamente por todo o continente. A primeira Loja fora das Ilhas Britânicas foi fundada em Paris, em 1726, por Charles Radclyffe, depois Duque de Derwentwater. Em 1746, Radclyffe seria executado em Londres por seu papel na campanha de Charles Edward Stewart, o “Bonnie Prince Charlie” pelo trono britânico. Antes de morrer, no entanto ele já fundara outras Lojas de França e a Maçonaria ganhara um irresistível impulso próprio.
Assustada com a vigorosa dissiminação da Maçonaria e as ameaças representadas pela instituição, a Igreja passou à ação. A 25 de julho de 1737, convocou-se uma conferência secreta do Santo Ofício em Florença, provavelmente sob os auspícios do próprio Papa Clemente XII. Assistiram-na três Cardeais e os chefes das Congregações papais básicas e o Inquisitor Geral. O único tópico de discussão foi a Maçonaria.
Os vazamentos de informação de alto nível naquela época eram quase tão comuns quanto hoje, e informações sobre o conclave secreto logo foram publicadas num jornal de Berlim. Segundo essas informações, os eclesiásticos reunidos estavam convencidos de que a Maçonaria era apenas a fachada de uma heresia muito mais vasta, abrangente e clandestina, de um tipo inteiramente novo. Mais tarde, no mesmo ano, motins antimaçons instigados por mãos invisíveis explodiram em várias cidadezinhas. Tornava-se cada vez mais claro que poderosos interesses nos bastidores começavam mobilizar-se contra a Maçonaria.
Nove meses após a conferência de Florença o Papa Clemente XII emitiu a primeira do que ia se tornar uma sequência cada vez mais beligerante de Bulas sobre o assunto. A Bula In eminenti começava:
“Condenação da Socidade, Lojas... (de) maçons, sob pena de excomunhão a ser incorrida ipso facto, e a absolvição sendo reservada ao Sumo Pontífice”.
A “contenção” em questão - prisão e correspondente punição - devia, se necessário, ser aplicada e efetuada com “a ajuda do ramo secular”.
Relutando em antagonizar a Igreja, vários dos regimes europeus agiram de imediato. A polícia da França começara a prender membros de Lojas e confiscar sua literatura - da qual deriva grande parte do nosso conhecimento da Maçonaria francesa da época. Na Polônia, a Maçonaria foi proibida em todo o reino. Na Suécia, a participação em rituais maçônicos foi declarada punível com a morte.
Em 1751, o sucessor do Papa Clemente, Benedito XIV, emitiu uma segunda Bula contra a Maçonaria, repetindo as condenações da primeira, mas acrescentando penalidades ainda mais severas. Apesar de tais medidas, porém, e para profunda consternação do Santo Ofício, católicos em números substanciais continuaram a entrar em Lojas. Mais preocupante ainda, as Lojas começaram a atrair não apenas católicos leigos, mas também padres e vários membros do alto clero. No fim do século XVII, a lista de maçons católicos de alto bordo foi aumentada por numerosos abades e bispos, um capelão imperial e pelo menos cinco arcebispos. A Maçonaria tornava-se rapidamente uma hidra de tantas cabeças, tão irreprimível, quanto o pretestantismo duzentos e tantos anos antes. E a Igreja, cada vez mais privada de exércitos seculares para impor sua autoridade, via-se significativamente mais impotente que na época da Reforma. Apesar das medidas draconianas instigadas pela Igreja contra os Maçons, o seu número iria aumentar e sua luta contra a perseguição da Inquisição continuar por mais três quartos de século. No fim, a Maçonaria sairia vitoriosa. Após as Guerras Napoleônicas e a restauração da monarquia espanhola, a Inquisição é que foi desmantelada. As Lojas sobreviveram e prosperaram na Espanha e nas suas colônias espanholas da América Latina.
História semelhante ocorreu em Portugal. Em algumas de suas obras, o romancista José Saramago, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998, descreve a onipresença da Inquisição portuguesa no século XVIII. Como sua correspondente na Espanha, ela precisava de um bode espiatório para justificar a continuaçlão de sua existência, e a Maçonaria era uma candidata óvia para o papel.
O Cardeal Joseph Ratzinger é o Grande Inquisidor de hoje, o atual Prefeito que preside a Congregação para a Doutrina da Fé. Nasceu na Baviera em 1927, e se ordenou padre em 1954, após servir em Freising, na diocese de Munique, ministrou aulas sobre dogma numa gama de universidades alemãs - Bonn, Münster, Tubingen e Regensburg. Participou do Segundo Concílio Vaticano e publicou vários livros. Em 1977, o Papa Paulo VI o fez cardeal e depois Arcebispo de Munique.
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