Autor: Aroldo de Albuquerque Vergara
Uma análise das diferenças e a origem da Maçonaria espúria
Introdução
É fato a percepção, e com certo assombro, do uso corriqueiro do termo “espúrio” quando alguns maçons fazem referência a certas obediências sem o devido tratado de amizade para com as suas respectivas. Esse fato parece-nos ser comum, e a devida falta de conhecimento quanto a verdadeira origem do termo é algo a que devemos focar toda a nossa atenção para ser corrigido, principalmente quanto aos aprendizes, pois são esses os mais suscetíveis a replicação de termos ou fenômenos sem o devido respaldo de concretude.
Somos seres gregários, necessitamos da convivência coletiva para a sobrevivência, porém, tal fato nos leva a assimilação e replicação da fala, de erros, superstições ou qualquer outra forma de manifestação cultural presente na sociedade, sem a devida verificação da sua verdadeira origem. Com o uso incorreto da palavra “espúria” não foi diferente.
Muitos maçons apenas replicaram esse erro conceitual, tornando-o um adjetivo de sentido ofensivo para se referir a toda obediência que não é a sua, e que é proibida de visitar a loja que frequenta. Típica manifestação vaidosa!
A Maçonaria é uma organização que tem como função primaz a eliminação da vaidade dos seus membros, o que, de fato, não é efetivo em todos, já que, afinal, somos humanos, e como tal cometemos erros. Exceto a Ordem, essa sim é perfeita, falhos são os homens. Sabendo disso, com toda a certeza, haverá aqueles, os quais compõem uma certa casta dentro da Ordem, dotada do poder da fala, o carisma de Bourdieu, que justifica toda e qualquer manifestação simbólica da linguagem por eles proferida, e como tal, irão contestar essas palavras. Fiquem à vontade! Pois o postulado de maior valor para esse autor na Maçonaria é justamente a liberdade de consciência e de expressão.
Assim sendo, esse ensaio visa orientar os maçons quanto ao uso do termo “espúrio”, e quando ele surgiu e foi usado na Maçonaria.
Regular ou reconhecida
Fato usual é a falta de conhecimento quanto a diferenciação desses dois termos, e tal objeto caracteriza-se como o principal articulador que induziu ao uso errôneo do termo ao qual nos referimos como objeto de elucidação desse ensaio. Assim, se fará necessário uma rápida explicação quanto ao uso desses dois adjetivos muito presentes no dialeto dos maçons brasileiros, já representam funções linguísticas diferentes nas suas determinações simbólicas no universo maçônico.
O termo regular refere-se aquilo que segue as regras, as Leis que, em nosso caso, são as Leis previstas na Constituição de Anderson ou Constituição dos Franco-maçons, os antigos Landmarks de Mackey, e os sintetizados por Pike, assim como as Constituições previstas e escritas por cada obediência brasileira. Essas últimas, baseiam suas Constituições, obrigatoriamente, nas antigas Leis ou costumes (Old Charges).
Aqui começa a ficar complicado, já que basta que uma obediência siga as Leis escritas por nossos antepassados para que ela seja considerada “regular”diante dos preceitos maçônicos. Assim, aquela obediência que muitos gostam de chamar de “espúria”, em muitos casos nem irregular é, pois cumpre todas as Leis previstas nos antigos costumes postulados pelos antigos maçons.
Traremos alguns exemplos para elucidação.
Peguemos o Grande Oriente da França, como exemplo para uma compreensão mais usual do que estamos argumentando. Ao contrário do que muito maçom pensa, ele não possui o reconhecimento (veja que surgiu o adjetivo “reconhecimento”) da Grande Loja Unida da Inglaterra, e, consequentemente, das obediências ditas como “regulares” no Brasil. Isso porque, em 1877, o Grande Oriente da França quebrou um dos princípios das Leis Maçônicas de maior importância para a Ordem que é, justamente, a crença no Grande Arquiteto do Universo, no que foi seguido por diversas outras obediências europeias, como o Grande Oriente Lusitano em Portugal.
Segundo as palavras de António Arnaut, ex Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano, tal prática se deu por respeito aos Direitos dos Seres Humanos de livre escolha quanto as suas crenças, incluindo o direito de ser ateu e não possuir crença alguma. Além de aceitar ateus em seu meio, o Grande Oriente da França também julgou que a não aceitação de mulheres seria uma grande violação aos direitos humanos, e passou a iniciar mulheres, o que também transgride os antigos preceitos e Leis escritas como imutáveis.
Como podemos ver, esses são exemplos clássicos de obediências que desrespeitaram as Leis maçônicas, o que lhes dá de imediato o adjetivo de “irregular”, mas não “espúria”. E por causa dessa irregularidade, foi cortado todo acordo de mútuo reconhecimento entre essas obediências e a Grande Loja Unida da Inglaterra, o que levou o Brasil a tomar a mesma atitude após o seu tratado de mútuo reconhecimento com a Grande Loja Unida da Inglaterra.
Portanto, uma obediência é “irregular” quando não cumpre os Landmarks, mas qualquer outra obediência pode ser “regular” desde que cumpra o que está preconizado nos antigos costumes da Ordem. Porém, apenas a “regularidade” não lhe garante o direito a intervisitação e, para que isso ocorra, faz-se necessário ser “reconhecida” por outra obediência através dos tratados de mútuo reconhecimento. Quando não há tratado de mútuo reconhecimento, a obediência recebe o epíteto de “não reconhecida”. O que acontece, por exemplo, entre o Grande Oriente do Brasil e o Grande Oriente Lusitano. Mesmo após toda a história de convivência que houve entre essas duas obediências, hoje não possuem mais tratados de mútuo reconhecimento, o que proíbe os maçons regulares (aqueles que estão dentro dos conceitos de regularidade de cada obediência, como estar em dia com as suas obrigações pecuniárias por exemplo) de visitarem o Grande Oriente Lusitano em Portugal.
Já podemos ver em redes sociais ou até mesmo in loco, maçons exibindo com orgulho suas visitas ao Grande Oriente da França em sessão ritualística, o que torna ainda pior a situação, e até mesmo ao Grande Oriente Lusitanos sem nem ao menos se darem conta do que ocorre.
Em suma, irregular é quando uma obediência não cumpre as Leis, o que a leva a perder a sua condição de reconhecimento pelas demais obediências, e não reconhecida se dá quando uma obediência não possui tratados de mútuo reconhecimento entre si. Mas devemos entender que, como nos exemplos citados, pode ocorrer os dois casos ao mesmo tempo e aí haverá o impedimento dos relacionamentos de intervisitação entre maçons paramentados e em sessão ritualística, o que acaba dando aos dois termos um resultado prático idêntico de impedimento de relações.
Toda essa situação levou ao surgimento, em 1961, do CLIPSAS (Centro de Ligação e de Informação das Potências Maçônicas Signatárias do Apelo de Estrasburgo), onde assinaram o tratado de Estrasburgo por não aceitarem a obrigatoriedade prescrita nos antigos Landmarks. Através desse Centro de Ligação Maçônica, essas obediências mantém entre si tratados de mútuo reconhecimento, congregando algumas obediências brasileiras como a Grande Loja Unida do Paraná.
A maçonaria espúria
Faremos agora uma breve colocação paro nos orientar na direção da origem dessa palavra “espúria” e seu uso, detectada por nós dentro do símbolo linguístico incluso na classe maçônica. E tal uso, quando identificamos, nos fez lembrar o termo “telefone sem fio”, essa forma com qual identificamos uma mensagem que passa de receptor para receptor e vai se perdendo durante o trajeto, ganhando outro significado até não se parecer em nada com o significado original com a qual foi idealizado ou, no caso em questão, escrita pelo autor.
Não nos interessa inferir qualquer tipo de julgamento de valor quanto ao posicionamento do autor estudado, se suas alegações são verdadeiras, científicas ou não. São deduções dele (autor) não nossa, já que resumidamente devemos entender a Maçonaria como uma organização de livre consciência e liberdade de expressão e, se qualquer maçom não concordar com o posicionamento do autor, é uma condição válida dentro dos princípios da Ordem. O que devemos entender é o respeito as crenças e as manifestações de ideias.
O termo foi usado por Albert Mackey, escritor norte-americano, em seu livro O simbolismo da Maçonaria. Mackey faz uso do termo dando-lhe os créditos para outro escritor que ele estudou. Segundo Mackey, foi o Dr. Oliver que fez uso do termo na fundamentação de elucidar seu estudo quanto ao surgimento da Maçonaria, em uma diferenciação de linhagens puras e espúrias (não pura).
Para darmos prosseguimento se faz necessário uma hermenêutica de seu texto quando Mackey faz a sua definição de Maçonaria, pois desse ponto em diante ele usará esse termo diversas vezes, o que poderá gerar uma má interpretação na leitura e compreensão.
Mackey entende que a Maçonaria é “uma ciência de moralidade, velada em alegoria e ilustrada por símbolos”[1]. Ele a vê como uma “filosofia”, um sistema de doutrinas que é ensinado de maneira bastante peculiar e própria por suas alegorias e símbolos. Essa é a sua natureza interior. Suas cerimônias são acréscimos externos que não afetam sua substância.[2]
Para ele, essa filosofia está fundamentada em dois pilares, que são a contemplação do caráter divino e humano. Ou seja, Deus como eterno e divino, e o homem como ser imortal, a fé na imortalidade da alma. Essas doutrinas, segundo o autor, definem o que configura a filosofia maçônica, a entendo como o princípio último da existência da Ordem, a sua razão e fundamentação, a caracterizando como sendo a própria Maçonaria.
Mackey compreende a Maçonaria como a sua filosofia e a sua filosofia como a Maçonaria, não a determinando como elementos separados, mas sendo uma única e concisa entidade, da seguinte forma: Quando se deseja defini-la sucintamente, dizemos que se trata de um antigo sistema filosófico que ensina esses dois dogmas.[3]
Para ele, esses dois dogmas da filosofia maçônica constituem o receptáculo que encubou o princípio da Ordem em outras religiões e civilizações.
Portanto, se entre a escuridão intelectual e a corrupção das antigas religiões politeístas encontrarmos espalhadas aqui e ali, em todas as épocas, determinadas instituições ou associações que ensinaram essas verdades de forma particular, alegórica e simbólica, temos o direito de dizer que essas instituições ou associações foram o incunábulo – as predecessoras – da instituição maçônica como ela se constitui hoje.[4]
Para Mackey, essas “verdades” são os dois pilares que compõem a maçonaria sintetizados em sua filosofia, e é justamente aqui que queríamos chegar para darmos andamento até a chegada no termo em questão. Daqui para frente, toda a vez que Mackey se refere a Maçonaria primitiva, ele não faz exatamente referência à Ordem que existe hoje, mas está aludindo a filosofia que ele entende serem as mesmas coisas em sua definição da Ordem.
Portanto, o autor acredita que no início do mundo haviam duas verdades, e essas verdades faziam justamente menção a uma proposição abstrata da união com Deus e a imortalidade da alma. A crença nessas verdades é uma condição necessária ao sentimento religioso que sempre caracterizou a essência da natureza humana. O homem é, enfaticamente, e em distinção a todas as outras criaturas, um animal religioso.[5]
Nesse contexto das verdades, a fé em Deus e a imortalidade da alma, citadas por Mackey, ele observa que, “provavelmente”, tais verdades haviam sido passadas através da linhagem dos patriarcas da raça de Set, de conhecimento de Noé, e este último passou essas verdades aos seus descendentes após o dilúvio descrito na Bíblia. Ainda de acordo com Mackey, durante a construção da torre de Babel, teria ocorrido uma dissidência na humanidade.
Esses dissidentes rapidamente se esqueceram das verdades divinas que lhes haviam sido transmitidas pelo ancestral comum e incorreram em um dos mais graves erros teológicos, corrompendo a pureza da adoração e a ortodoxia da fé religiosa que eles haviam inicialmente recebido.[6]
Dessa forma, o autor divide a transmissão dessas verdades para duas classes, sendo a primeira a dos descendes de Noé e a segunda a dos padres e filósofos. Com o tempo, podem ter chegado até as religiões pagãs e, posteriormente, a todos os iniciados nesses segredos como na religião egípcia e grega, que usavam iniciações para a transmissão de seus segredos e mistérios.
Quanto à sua existência entre um grupo de eruditos pagãos, temos o testemunho de muitos escritores inteligentes que devotaram suas energias ao mesmo assunto. O sábio Grote, em sua “História da Grécia”, diz: A interpretação alegórica dos mitos tem sido estudada por vários pesquisadores, especialmente por Creuzer, e está ligada à hipótese de um antigo e altamente instruído grupo de padres, com origem tanto no Egito como no Ocidente, que comunicaram conhecimentos religiosos, físicos e históricos aos bárbaros e rudes gregos, sob o véu dos símbolos. O que se disse sobre os gregos é igualmente aplicável a qualquer outra nação intelectualizada da Antiguidade.[7]
Dessa forma, Mackey categoriza a primeira classe como sendo a Maçonaria pura, aquela advinda diretamente da linhagem de Noé, e a segunda como a Maçonaria “espúria”, que teve seus ensinamentos e mistérios provenientes dos filósofos e religiões pagãs, que receberam essas verdades por intermédios daqueles que se corromperam no processo de transmissão.
O autor ainda continua dando mais ênfase ao tema, conduzindo até a construção do Templo de Salomão. Mas iremos nos ater até aqui para não entrarmos em assuntos inerentes aos demais graus da filosofia maçônica pois, como já anunciamos, esse ensaio tem por finalidade primaz a orientação aos aprendizes.
Considerações finais
Podemos inferir que o termo “espúria” é uma referência descrita por Mackey, a partir da leitura de textos do Dr. Oliver. Ele distingue duas classes de transmissão das verdades que são os pilares da filosofia maçônica. Originalmente não é usada não para referir-se a obediência maçônica regular ou irregular, reconhecida ou não reconhecida. Portanto, entendemos que existe a necessidade de reformular o uso de tal palavra que, atualmente, em nada se assemelha ao seu verdadeiro uso.
É imprescindível destacar que Mackey viveu nos Estados Unidos da América, entre os anos de 1807 e 1881, e foi o escritor dos 25 Landmarks que caracterizam o que uma obediência deve conter para ser considerada “regular”, e ele não usa o termo em questão para caracterizar o que seria ou não regular.
Devemos aqui ressaltar que ao maçom cabe a busca incessante da verdade, e o que foi escrito aqui não caracteriza a verdade absoluta, pois, como sabemos, na filosofia maçônica não devem existir verdades absolutas, já que se elas existirem de fato, a Ordem perdeu seu princípio.
Fonte: Fonte: https://opontodentrocirculo.com
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