Rodrigo Constantino
A Revolução Americana representa o experimento mais liberal,
em grande escala, que se tem conhecimento até hoje. Os ideais representados
pelos “pais fundadores” da nação ajudaram a criar um ambiente de ampla
liberdade individual, incluindo a religiosa. Alguns conservadores da direita
cristã, entretanto, tentam reescrever a história de seu país, transformando
tudo num projeto cristão.
O ex-presidente Bush encarna esta imagem com perfeição,
misturando os temas da fé com os do governo. Preocupada com esta deturpação dos
fatos, Brooke Allen escreveu Moral Minority, um livro que enaltece a postura
cética dos principais “pais fundadores”.
Ela argumenta que a nação americana não foi fundada nos
princípios cristãos, e que a elite responsável tanto pela independência quanto
pela Constituição era filha do iluminismo que florescia em sua época. Em suma,
os “pais fundadores” eram herdeiros de Locke, não de Cristo.
Os massacres e perseguições religiosas que marcaram a
Reforma na Europa eram muito recentes ainda, e os “pais fundadores” estavam
determinados a evitar algo parecido. Unificar as diferentes seitas existentes
nas colônias era um desafio. A religião deveria ser vista como uma questão
pessoal, subjetiva, que ficaria fora da arena pública da política. Figuras de
destaque, como Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e James Madison, avançariam
na idéia de “tolerância religiosa” de Locke, para pregar, de fato, a liberdade
religiosa. Um muro seria erguido entre o Estado e a religião.
Brooke Allen seleciona alguns dos mais importantes “pais
fundadores” e faz uma análise meticulosa de suas visões religiosas,
especialmente por meio de cartas particulares trocadas por eles. É preciso
lembrar que eles eram figuras públicas, com objetivos políticos, vivendo numa
época em que certos dogmas nem sequer eram questionados pelas massas. Assumir
uma postura mais radical sobre um tema tão delicado como religião poderia ser
fatal para as ambições políticas de alguém. Mesmo assim, as declarações
públicas desses homens demonstram como suas crenças sofreram forte influência
iluminista. Algumas afirmações seriam impensáveis até nos dia de hoje, por
conta de um preocupante retorno do misticismo.
Benjamin Franklin, um dos mais respeitados “pais
fundadores”, fora criado como um Presbiteriano, mas reconhecia que o importante
eram poucas regras de bom senso comuns a todas as religiões. Ele não era
freqüentador assíduo de igrejas, admitia que a “revelação” não havia o
influenciado, e dizia respeitar todas as diferentes religiões. Para ele, o
relevante eram as ações dos homens, boas ou más, e não seus pensamentos. Sua
visão religiosa era bastante utilitarista. Além disso, ele negava o monopólio
da verdade a qualquer seita, preferindo uma postura de modéstia. Palavras como
“certeza” eram evitadas por Franklin, que adotava um método mais socrático.
Jesus teria sido um importante pensador, mas Franklin tinha dúvidas sobre sua divindade,
e não parecia se importar muito com isso. Para ele, esta era uma questão
indiferente. Alguém pode imaginar uma interseção entre os fundamentalistas
cristãos da direita americana atual e Benjamin Franklin?
O primeiro presidente americano, general George Washington,
encarava a religião como algo bastante pessoal também. Poucas crenças simples
bastavam para um bom convívio social, e Washington não era chegado a adorações
religiosas. No leito de sua morte, Washington rejeitou a presença de um padre, contrário
aos hábitos cristãos. John Adams defendia mais abertamente a separação entre
religião e política. Adams mantinha uma postura mais pessimista em relação à
natureza humana, e acreditava que as paixões como vaidade, orgulho, avareza e
ambição iriam sempre predominar sobre a moralidade ou a religião, Sua visão do
clero não era positiva de forma alguma. Adams reconheceu, após muita leitura
sobre teologia, que pouca importância havia ali, e que suas crenças,
inalteradas por décadas, poderiam ser resumidas nas palavras “ser justo e bom”.
Enfim, uma tolerância universal que não depende do credo religioso de cada um.
Thomas Jefferson foi um dos “pais fundadores” mais radicais
contra a interferência da religião na vida política. Difamado como o Voltaire
de Virgínia pelos seus opositores, Jefferson defendia o escrutínio científico
sobre qualquer assunto, incluindo religião. O Estatuto de Virgínia pela
Liberdade Religiosa, escrito por ele, era um documento radical para a época,
que acabou servindo como modelo para a separação entre governo e igreja depois.
As crenças religiosas deveriam ser da esfera individual; ninguém é agredido
pelo que o vizinho pensa sobre deuses e fé. Para Jefferson, em todos os países
os padres foram hostis à liberdade, sempre em alianças com o déspota,
garantindo proteção em troca. Em uma carta ao seu sobrinho, Jefferson sugeriu
que a Bíblia fosse lida como se lê Tácito ou Lívio. A sua própria razão deveria
guiá-lo, rejeitando preconceitos e crenças de todos os lados. Jefferson pensava
que as diferentes religiões convergiam na essência, em regras básicas de
convívio em sociedade, mas que lutas sangrentas eram travadas por causa de seus
dogmas, totalmente irrelevantes para o bem-estar geral. Pessoas boas existem em
todas as religiões, e isso é o importante, não as religiões em si. Jefferson se
considerava um seguidor de Epicuro.
O amigo de Jefferson, James Madison, também considerava
totalmente errado o governo se meter em religião. Uma pequena interferência
seria uma grave usurpação de direitos. Para Madison, a humanidade achava mais
confortável crer num deus, e isso era o máximo que poderia ser dito sobre o
assunto. Cada seita deveria conviver pacificamente com as demais, e um
monopólio seria um grande perigo. Por este motivo, Madison não aceitava a idéia
da América se definir como uma nação cristã. A maioria poderia seguir a fé
cristã, mas isso não dava o direito de ela interferir no pensamento das
minorias. O legado cristão, para Madison, era de indolência do clero,
servilismo dos leigos, e muita perseguição. O “pai da Constituição” pregava que
tanto a religião quanto o governo seriam mais puros se não se misturassem.
Thomas Paine era, sem dúvida, o mais radical dos “pais
fundadores” nos discursos, talvez porque não tivesse ambições políticas e podia
falar o que pensava abertamente. O autor de Common Sense chegou a ser preso na
França por apoiar a Revolução Francesa, que claramente cometeu excessos
condenáveis, em parte como reação aos excessos absurdos da própria Igreja
Católica no país. Em The Age of Reason, Thomas Paine abre fogo direto contra os
diferentes credos religiosos que espalhavam intolerância entre os indivíduos.
O que Brooke Allen mostra no livro é como os principais
“pais fundadores” beberam da fonte iluminista, que permitiu um grande avanço
das liberdades religiosas. O cristianismo não é o responsável por isto, pois
enquanto teve o poder político, não havia espaço nem liberdade para outras
seitas. Uma das melhores ilustrações da influência iluminista na nova nação foi
o Tratado de Tripoli, assinado em 1797, declarando com todas as letras que o
governo dos Estados Unidos não era, de forma alguma, fundado na religião
cristã. O documento foi apoiado pelo então presidente John Adams, e foi
ratificado no Senado por unanimidade. É bom lembrar que, após centenas de
votações já realizadas no Senado até então, esta foi apenas a terceira com
votação unânime.
Segundo seus próprios fundadores, portanto, os Estados
Unidos eram um produto do iluminismo, não da religião cristã. O filósofo John
Locke merece mais crédito que Cristo por esta experiência revolucionária, que
garantiu uma liberdade individual jamais antes vista na história da humanidade.
O que a direita cristã deseja, portanto, não é um resgate aos valores pregados
pelos “pais fundadores” dos Estados Unidos, mas um retrocesso aos tempos
medievais, onde religião e governo eram coisas totalmente misturadas, e não
havia liberdade religiosa alguma.
(Rodrigo Constantino é economista pela PUC-RJ, com MBA de
Finanças pelo IBMEC. Trabalha no mercado financeiro desde 1997. É autor do
livro "Prisioneiros da Liberdade", da editora Soler.)
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