1. Introdução
Esta Peça de Arquitetura refere-se à Terceira Instrução Clássica do Grau de Companheiro Maçom. O tema do trabalho é A Busca da Verdade e o Processo de Inferência Científica. Tendo refletido sobre que tipo de trabalho poderia ser considerado apropriado, pensei que uma peça examinando alguns tópicos fundamentais do método de inferência científica e sua associação com a busca da verdade seria válido, pois traria ao exame e à discussão assuntos que estão na base da aquisição humana de conhecimento, ou na contínua busca da verdade. Nesse particular, considero que os assuntos enfocados estão abrangidos pelos complementos à 3a. Instrução.
Um dos desafios sentidos ao longo da preparaçao deste trabalho foi escolher quando e onde parar na apresentação e discussão de cada matéria. Todos os tópicos propiciam tanto extensões em profundidade como múltiplas conexões com outros quesitos.
O verdadeiro significado do que é, do sentido, e de como funciona a inferência científica tem tudo a ver com a busca da verdade. Por outro lado, tendo por base conhecimentos acadêmicos, a experiência parece demonstrar que é comum existir, por parte de muitos, uma certa pressa em chegar-se, o quanto antes, a decisões conclusivas a partir de dados levantados. Com isso, ficam para trás muitas questões de extrema importância, entre elas o entendimento de como operam os métodos empregados e sua influência nos resultados que se obtém da análise da informação levantada.
2. Construção de teorias
Para que se possa extrair conclusões úteis a respeito de problemas do mundo real, é necessário que se possuam teorias que expliquem, de forma coerente e satisfatória, a ocorrência de fenômenos de interesse.
Quando uma teoria é considerada errada e é substituída por outra, a nova teoria deve suprir previsões corretas aos quesitos responsáveis pela rejeição da antiga. Além disso, a nova versão deve ter maior “conteúdo empírico”1 e ser mais aberta à refutação, e não menos. Isso significa que é cientificamente inválido impor restrições a uma nova teoria de modo que ela não possa ser rejeitada.
De acordo com o filósofo David Hume2, há duas formas básicas pelas quais sabe-se (ou imagina-se que sabe-se) coisas: A primeira é a dedução, que extrai conclusões lógicas a partir de regras e fatos previamente conhecidos. A segunda é a indução, um processo de generalizar-se conclusões com base no conhecimento parcial de algum fenômeno.
3. Dedução
3.1 Silogismos e sorites
Na dedução, as declarações que correspondem ao conhecimento prévio dos fatos são chamadas premissas, e a forma de raciocínio ou argumento que faz o encadeamento das premissas à conclusão é denominado silogismo.
O silogismo contém três proposições:
i. premissa maior;
ii. premissa menor
iii. conclusão.
Admitida a coerência das premissas, a conclusão se infere da maior por intermédio da menor. Exemplo:
i) Todos os seres vivos são mortais;
ii) Um cão é um ser vivo;
iii) Um cão é mortal.
Quando há mais de duas premissas, o silogismo em cadeia resultante é chamado sorites, com uma conclusão, que pode ser verdadeira ou falsa.
Sorites aristotélicos ou progressivos são aqueles em que o predicado de cada premissa é o sujeito da seguinte. A conclusão é formada pelo sujeito da primeira e o predicado da última, como exemplificado a seguir.
Premissas: i - vi
i) O bisbilhoteiro é um intrigante;
ii) O intrigante é um semeador de discórdia;
iii) Um semeador de discórdia é um promotor de desordem;
iv) Um promotor de desordem é um sabotador do progresso;
v) Um sabotador do progresso é um inimigo do povo;
vi) Um inimigo do povo é um antipatriota;
Conclusão: vii
vii) O bisbilhoteiro é um antipatriota.
Nos sorites Goclecianos ou regressivos o sujeito de cada premissa é o predicado da seguinte, e a conclusão é formada pelo sujeito da última e o predicado da primeira. Exemplo:
Premissas: i - iv
i) O animal é um irracional;
ii) O mamífero é um animal;
iii) O primata é um mamífero;
iv) O ser humano é um primata;
Conclusão: v
v) O ser humano é irracional.
Há muitos tipos de problemas que podem ser resolvidos logicamente por dedução. Toda a geometria Euclidiana, por exemplo, pode ser deduzida de um conjunto de cinco axiomas. O matemático e filósofo René Descartes desejou fazer o mesmo com os fatos do mundo real, a partir da identificação de fatos primários tidos como absolutamente verdadeiros. Estes seriam os axiomas - premissas - sobre os quais todo o conhecimento posterior poderia ser construído. O problema com este método é que todas as declarações sobre o mundo real possuem um componente de dúvida3.
Pode-se dizer que grande parte do conhecimento científico fundamenta-se em deduções através de sorites, que são capazes de prover uma grande massa de informações a partir de algumas regras gerais. Além disso, as sorites permitem uma economia de experimentações, visto que muitos fatos observados podem ser diretamente aplicados, por via da generalização, a outros fenômenos. William Poundstone [POUN88] exemplifica esse ponto de vista argumentando que “...quase certamente nunca alguém realizou um experimento para verificar se um corvo consome oxigênio. Outras experiências mostraram que diversas espécies de animais necessitam de oxigênio, e se houvesse alguma razão para se crer que corvos são criaturas anaeróbicas, esta contingência teria sido testada.”
3.2 Silogismos fortes: modus ponens e modus tollens
O raciocínio lógico dedutivo pode ser sintetizado pela aplicação repetida de dois silogismos poderosos4
[JAYN93], cujas regras de implicação têm um antecedente "Se ... " (premissa) e um consequente "Então ... " (conclusão):
Modus Ponens (afirmação do antecedente)
Se A é verdadeiro, então B é verdadeiro
(implicação original)
A é verdadeiro (premissa = afirmação do antecedente )
Portanto, B é verdadeiro (conclusão deduzida)
Modus Tollens (negação do consequente)
Se A é verdadeiro, então B é verdadeiro
(implicação original)
B é falso (premissa = negação do consequente)
Portanto, A é falso (conclusão deduzida)
A realização de experimentos controlados - onde as causas são isoladas e associadas aos efeitos - significa uma busca de relações gerais do tipo “todos os X’s são Y’s”, pois as mesmas possibilitam deduções diretas e rápidas. Embora pretendidas e desejáveis, os tipos de relações acima não são usualmente autorizados pelas informações disponíveis ou conseguidas experimentalmente. Isso conduz a formas menos categóricas de silogismos, pertencentes aos tipos descritos na sequência.
3.3 Silogismos fracos
Afirmação do consequente
Se A é verdadeiro, então B é verdadeiro (implicação original)
B é verdadeiro (premissa = afirmação do consequente)
Portanto, A torna-se mais plausível (conclusão deduzida)
A afirmação do consequente - que corresponde à conclusão da implicação - como condição suficiente para estabelecer a verdade (no sentido absoluto) do antecedente - premissa - é uma falácia comum. Sob o ponto-de-vista da lógica bivalente (que admite apenas falso OU verdadeiro), esse tipo de inferência dedutiva é vedada. A constatação de que “B é verdadeiro “não implica necessariamente em “A é verdadeiro“. Isso equivale a admitir que a ratificação de consequências pode sempre trazer maior confiança à veracidade de A.
Negação do antecedente
Se A é verdadeiro, então B é verdadeiro (implicação original)
A é falso (premissa = negação do antecedente)
Portanto, B torna-se menos plausível. (conclusão deduzida)
Como uma das razões para que B seja verdadeiro foi eliminada pela evidência “A é falso“, acontece uma redução na plausibilidade de B. Segundo a lógica, uma premissa falsa implica em qualquer conclusão. Assim, a evidência “A é falso“ não prova que “B é falso“, apenas diminui sua plausibilidade.
Implicação atenuada
Se A é verdadeiro, então B torna-se mais plausível (implicação original)
B é verdadeiro (premissa)
Portanto, A torna-se mais plausível (conclusão deduzida)
Jaynes5 observa que os silogismos acima referem-se tão-somente a implicações lógicas, e não a relações físicas de causa e efeito.
4. Indução
Nenhuma regra de indução deve permitir que conclusões mutuamente incompatíveis possam ser extraídas do mesmo conjunto de evidências.
Na dedução o ponto de partida é uma teoria geral ou um conjunto de axiomas assumidos como verdadeiros, e verifica-se quais são os teoremas que se conformam com as regras. Diferentemente, a indução pretende estabelecer um modelo geral, uma teoria, a partir de dados particulares observados. Apenas a dedução é rigorosa, pois é impossível provar uma lei geral por meio de instâncias confirmadoras da mesma - amostras parciais - ou seja, a indução é a base do método científico, mas não é rigorosa nem definitivamente conclusiva.
Alguns filósofos e cientistas rejeitam a indução com base no argumento de que não há qualquer forma de prová-la absolutamente certa. Todavia, a função da indução não é o estabelecimento de quais previsões estão corretas, mas quais são aquelas que derivam do estado de conhecimento disponível no momento. Se as previsões mostram-se satisfatórias no cotejo com a realidade, a tendência é se ter maior confiança naquilo que a teoria preconiza, mas - e aqui está a sutileza - não houve acréscimo de conhecimento.
Em suma, é impossível construir uma teoria única, exclusiva e absolutamente verdadeira com base em um número finito de observações.
4.1 Modelos de investigação científica
A classificação de modelos descrita a seguir [BHAT92] foi apresentada por Churchman [CHUR71], que em seu trabalho emprega os conceitos primitivos de idéias inatas e entradas do sistema. O primeiro conceito refere-se a certos princípios acerca de verdades da natureza em que o investigador crê, enquanto que as entradas significam as observações que provêm de experimentos efetuados pelo investigador. Uma rede de fatos contingentes é então construída pela interconexão das idéias inatas e entradas através de um conjunto de operadores.
4.2 O Sistema Leibniziano
Dentro deste modelo, o objetivo é construir uma rede ótima - suposta existente - de fatos para uma dada situação. A prática da ciência pode ser considerada como um sistema Leibniziano, pois cada nova descoberta é uma entrada que é associada à rede de fatos anterior. Se o campo de conhecimento é regido por uma teoria, esta provê os operadores e relações para a inclusão dos novos resultados, de tal forma que o produto final corresponda às idéias inatas do investigador. Enquanto um resultado obtido que esteja fora da amplitude da rede global é descartado, uma outra descoberta que possibilite a conexão de subtrechos da rede ainda não interligados é recebida com entusiasmo. O sistema Leibniziano assume a existência a priori de um modelo - que pode ser o conjunto de idéias inatas ou uma teoria - que explique uma situação, e seu esforço é no sentido de buscar uma configuração de entradas que se adapte ao modelo pré-concebido.
4.3 O Sistema Kantiano
No sistema Kantiano, a existência prévia de um modelo - único e ótimo - para a situação não é assumida. Em vez disso, a investigação Kantiana considera um conjunto de modelos independentes, cada qual composto de suas próprias idéias inatas, noções primitivas, axiomas e regras de inferência. O investigador seleciona um dos modelos e constrói uma rede de fatos Leibniziana com as idéias inatas do modelo escolhido e as entradas disponíveis. Uma medida de quão satisfatória a rede de fatos resulta é assessada, de acordo com algum critério estabelecido. O modelo que conduz à rede mais satisfatória torna-se a solução da investigação. Um exemplo de aplicação deste método é a pesquisa em ciências sociais, onde tenta-se encontrar um modelo teórico que acomode convenientemente as informações obtidas.
4.4 O Sistema Hegeliano
Este método busca enquadrar as mesmas entradas em diferentes modelos ou enfoques. Assim como no sistema Kantiano, um conjunto de modelos está disponível, havendo um conjunto de proposições possivelmente verdadeiras sobre a situação em análise, chamado de conjunto de informação. Uma regra de relacionamento - operador - interpreta fatos através de cada modelo disponível obtendo um conjunto de informação composto de teses. O melhor modelo que concilie os conflitos detectados entre as teses é chamado de modelo síntese da situação.
4.5 A escolha de um Sistema
O domínio do problema em análise é fundamental para a escolha do sistema de investigação mais promissor. O conhecimento de que se dispõe e a convicção sobre onde reside a verdade da situação é que vai sugerir a linha de investigação a se adotar.
O desenvolvimento do raciocínio na investigação da verdade científica pode então ser condensado como abaixo6:
Dados:
Os aspectos acessados do problema, traduzidos por eventos observados - entradas (inputs);
O campo de conhecimento - domínio do problema - que supre os fatos básicos para a construção dos modelos factíveis para o domínio considerado;
Determinar:
- Um modelo compatível com os eventos observados e que satisfaça algum critério de relevância quanto ao enfoque de interesse para a questão. O modelo é obtido de acordo com algum dos sistemas descritos - Leibniziano, Kantiano ou Hegeliano;
- Uma inferência a respeito dos aspectos não-observados da situação dentro da estrutura do modelo selecionado.
5. Conclusão
Colocada a questão do raciocínio da forma exposta, parece que o assunto esgota-se pela aplicação da metodologia descrita. Sabe-se, porém, que a verdade está distante disso, e as dificuldades para consolidar-se o conhecimento de maneira sistemática, precisa e robusta são enormes. Em grande parte das situações reais, não se tem a informação relevante necessária, e frequentemente os dados de que se dispõe são incompletos7, incertos8 ou imprecisos9.
Todavia, a mera verificação da veracidade de uma consequência de uma hipótese em conjunto com alguma condição inicial pode ser totalmente incapaz de trazer qualquer credibilidade à hipótese. Considere-se o seguinte exemplo, equivalente a um outro similar atribuído a Bertrand Russell[RUSS48]10:
I. Hipótese: Pessoas cegas apreciam ballet clássico.
II. Condição inicial (fato observado): Pessoas cegas são seres sensíveis.
III. Consequência esperada como verdadeira de I e II conjuntamente: Apreciadores de ballet clássico são pessoas sensíveis.
IV. Evidência: Constata-se que muitos apreciadores de ballet clássico são pessoas de elevada sensibilidade.
V. Conclusão: Dadas as condições iniciais, a evidência encontrada é confirmadora da hipótese (?!).
O que há de errado aqui? O que está levando - indevidamente - à confirmação da hipótese é a “afirmação do consequente” (em III), deduzindo a verdade das premissas através da ratificação da conclusão11. O problema é que isso não pode ser feito automaticamente em toda e qualquer situação.
Algumas propriedades fundamentais das relações dedutivas são totalmente inválidas quando aplicadas à lógica da confirmação, em vez de somente à lógica dedutiva.
Notas
1 Definição atribuída a Karl Popper [POPP94].
2 Nascido na Escócia (1711-1776) [HUME86]
3 Descartes terminou por concluir que a única coisa de que alguém poderia estar absolutamente certo seriam suas próprias sensações subjetivas.
4 Como já constava do Organon de Aristóteles, séc. IV A.C.
5 Op. Cit. [JAYN93].
6 Op. Cit, [BHAT92], pp. 34.
7 Conhecendo-se, por exemplo, um conjunto de sintomas médicos, estes podem não ser suficientes para se determinar o processo fisiológico exato responsável pelo encadeamento ou associação entre eles.
8 A incerteza refere-se ao grau com que se admite que alguma teoria ou idéias inatas a respeito de algum fenômeno sejam verdadeiras.
9 A imprecisão relaciona-se com o nível de detalhe, expresso em termos numéricos, que se pode admitir para a mensuração de uma variável qualquer, esteja esta contida nos dados observados (entradas) ou ainda como componente da teoria, na forma de uma constante ou parâmetro.
10 No exemplo de Russell, a hipótese considerada era “Porcos têm asas”, cuja substituição pela apresentada no texto e sugerida pelo autor deste trabalho, tem caráter apenas estético.
11 Apreciadores de ballet - pessoas sensíveis; pessoas sensíveis - apreciadores de ballet (aqui foi feita a afirmação do consequente, o que é inválido); pessoas cegas - seres sensíveis; Falácia: pessoas cegas são apreciadoras de ballet.
Bibliografia
Fonte Principal de Consulta
"Probabilidade, Inferência e Decisão: Um Ensaio sobre o Método Científico" Tese Inédita de Concurso para Professor Titular, UFSC 1998 - 115 páginas - Autor Paulo Sergio da Silva Borges.
Referências citadas no texto
[BHAT92] Bhatnagar, R. E Kanal, L. N.: “Models of Enquiry and Formalisms for Approximate Reasoning”, em Fuzzy Logic for the Management of Uncertainty, pp. 29-54 - John Wiley & Sons, ed. Lotfi Zadeh e Janusz Kacprzyk, EUA, 1992.
[CHUR71] Churchman, C. W.: “The Design of Inquiring Systems: Basic Concepts of Systems and Organization”, Basic Books, NY, 1971.
[HUME86] Hume, David: “A Treatise of Human Nature”, Penguin Books, NY, 1986.
[JAYN93] Jaynes, E. T.: “Probability Theory: The Logic of Science” – cap. 1, pp. 101-104 - Fragmentary edition www, Washington University, setembro1993. http://omega.albany.edu:8008/JaynesBook.html.
[POPP94] (O progresso do conhecimento científico). Brasília, Editora da UNB, 1994.
[POUN88] Poundstone, William: “Labyrinths of Reason”, pp. 96 - Anchor Books, NY, 1988.
[RUSS48] Russell, Bertrand: “Human Knowledge: Its Scope and Limits”, parte 5, cap. 3 – Simon & Schuster, NY, 1948.
*O Ir∴ Paulo Sergio da Silva Borges à época da feitura do presente trabalho era C∴M∴ (Or∴de Florianópolis, 13 de maio de 2010) da A∴R∴L∴S∴TEMPLÁRIOS DA NOVA ERA N. 91.
Hoje é Mestre de Harmonia da Loja.
Fonte: JBNews - Informativo nº 233 - 18.04.2011
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