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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O CONCEITO E A PRÁTICA DA TOLERÂNCIA

Por Raymundo de Lima
Psicanalista, Professor do Departamento de Fundamentos da Educação (UEM) e doutorando na Faculdade de Educação (USP)

Levantamos três pontos sobre o conceito de tolerância e suas implicações, com o intuito de contribuir para uma maior clareza nos debates e intenções de ação prática. 

1. Tolerância é uma das tantas virtudes[1], necessárias para elevar o ser humano à condição de civilidade. Ela faz parte do processo de desenvolvimento ético de indivíduos e grupos, cuja meta é levá-los a manter a "disposição firme e constante para praticar o bem". Implica em dois sentidos. “Ser virtuoso”, tanto pode ser um sujeito com disposição de praticar o bem, como também pode ser "toda pessoa que domina em alto grau a técnica de uma arte" (Dic. Aurélio: p.1465), por exemplo, ser um "virtuose na arte de tocar violino".

Na tradição da filosofia moral, a tolerância não é exatamente considerada uma "grande virtude" ou "virtude cardinal", tal como é a justiça, a coragem, a prudência e a temperança ou moderação. Contudo, ela não deve ser posta do lado das chamadas "pequenas virtudes", como é o caso da polidez. A tolerância deve ser vista numa posição especial, de entremeio das virtudes, sendo mais que respeito, polidez ou piedade. S.P. Rouanet, a vê "como passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico de convívio das diferenças". Sinaliza, no entanto, que "as diferenças não devem ser apenas toleradas, porque do contrário elas se reduziriam a um sistema de guetos estanques, que se comunicariam no espaço público; deve ser uma virtude que cause interpenetração entre os diferentes" (FSP, 9/2/03). Ou seja, a tolerância deve ser um ato constante de prevenção e educação[2].

Alain, pensador sempre citado nos estudos sobre as virtudes, diz que a tolerância "é uma espécie de sabedoria que supera o fanatismo, esse terrível amor à verdade" (apud A. Comte-Sponville (Pequeno tratado das grandes virtudes. SP: M. Fontes, 1995). No fundo, sinalizamos acima, ela é uma espécie de prevenção contra o dogmatismo, para que este não vire fanatismo (na dimensão pessoal), fundamentalismo (na dimensão religiosa) e totalitarismo (na dimensão de Estado ou de Governo). 

Localizada como virtude de entremeio, a tolerância é exercício necessário para se conquistar a Sabedoria[3]. Na consideração de André Comte-Sponville, é uma virtude necessária para o exercício das coisas pequenas do cotidiano. 

Nela, existe uma espécie de prontidão e atividade; "prontidão" a favor de idéias e atos de tolerância e "atividade" contra tudo que se cerceia, reprime, oprime, discrimina, que não respeita as diferenças humanas, sejam étnicas, culturais, religiosas, etc. A democracia é um bom exemplo de exercício, ao mesmo tempo, de "prontidão" e "atividade" de tolerância, ou seja, "democracia não é fraqueza. Tolerância, não é passividade", assinala Comte-Sponville. Olgaria Matos lembra que “tolerare” quer dizer “levar”, “suportar” e também “combater” (FSP-Mais! e www.librairie.hpg.ig.com.br/) 

Quem se pretende possuir "a verdade", ou melhor, "a certeza", termina sendo intolerante em aceitar outros posicionamentos, se fechando a escuta de tudo que apresente diferente ou incompreensível ao seu esquema conceitual de fala e ação. O moralista, por exemplo, é in-tolerante com os que possuem valores diferentes do seu; em verdade, sabemos se tratar de um moralista quanto sofremos a imposição de seus valores, baseado em sua “certeza moral”. O moralista carrega a ambição de impor a todos, universalizando seus valores como certos. Enfim, "toda intolerância tende ao totalitarismo" ("integrismo", em matéria religiosa). Ser intolerante é manter uma "atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas crenças e convicções" (Rouanet, op.cit). Tradicionalmente, a religião tem sido o principal agente da intolerância, como também é vítima. 

2. Um breve levantamento histórico diz que a palavra tolerância foi "parida" nos conflitos religiosos, no séc. 16, na época das guerras religiosas entre católicos e protestantes. André Lalande (Vocabulário técnico e crítico de filosofia. SP: M. Fontes, 1993), conta que "os católicos acabaram por tolerar os protestantes, e reciprocamente. Depois foi reclamada a tolerância em face de todas as religiões e de todas às crenças". A partir do século 19, a tolerância estendeu-se ao livre pensamento e, no século 20, passou a ser acordo internacional com intenção de ser exercitada, através da Carta aos Direitos Humanos em 1948, também através de algumas ONGs e de governos não totalitários. 

3. Há um importante questionamento: a tolerância deve ter limites ou não? Para o escritor e Nobel em Literatura, José Saramago, "a tolerância para no limiar do crime. Não se pode ser tolerante com o criminoso. Educa-se ou pune-se" (FSP, 27/01/95). Nesse sentido, não se pode ser tolerante para com a tortura, o estupro, a pedofilia, a escravidão, o narcotráfico, o terrorismo, a guerra. Já o filósofo Vladimir Jankélévich, considera que, se levada a extremo, a tolerância "acabaria por negar a si mesma", Ou seja, "a tolerância só vale, pois, em certos limites, que são os de sua própria salvaguarda e da preservação de suas condições de possibilidade". O escritor e pacifista israelense Amós Oz, para quem a tolerância é a questão fundamental do séc. 21, nos deixa uma pergunta bem atual: "A tolerância deve se tornar intolerante para se proteger da intolerância?"(FSP, 10/1/99).

De todas as virtudes, a tolerância revela um paradoxo chamado por Karl Popper de "paradoxo da tolerância": "Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e com eles a tolerância".

Após os ataques de 11 de setembro de 2001 e a invasão anglo-americana ao Iraque, o filósofo S. Zizek analisa o paradoxo da tolerância numa democracia. Ou seja, uma democracia deve ou não impor limites de tolerância tendo em vista a ânsia dos intolerantes pelo poder? “Seria possível ser tolerante para com um partido antidemocrático, vencedor das eleições livres, com a plataforma de abolição da democracia formal? (como já aconteceu na Argélia). Seria possível ser tolerante para com uma invasão militar, com a justificativa de derrubar um ditador sanguinário para impor a democracia? É possível confiar numa democracia imposta? Democracia é um regime que se impõe autoritariamente, ou acontece segundo determinantes específicos e temporais da cultura? 

Contudo, se a tolerância pudesse existir sem limites, se fosse uma virtude universal, onde todos fossem plenamente respeitados e respeitadores das diferenças humanas, provavelmente o mundo seria melhor de se viver. Mais que desejo e aspiração ética, seria uma utopia realizada. Entretanto, uma sociedade plenamente tolerante, continuaria sendo humana?

[1] No sentido da ética, virtude é o que faz com que um sujeito aja de forma a fazer o bem para si e para os outros. Platão considerava a virtude como uma qualidade que o indivíduo traz consigo e que, portanto, não pode ser ensinada. Aristóteles pensa o contrário, ou seja, ações boas realizadas e repetidas pelo sujeito, forma o hábito (gr.: areté = virtude) de ser bom. “Ela é a medida justa entre dois extremos, um por excesso e outro por falta. A partir da modernidade, se entende que a virtude é a disposição moral para o bem, ou “a força de resolução que o homem revela na realização de seu dever” (Kant). São virtudes: a justiça, a moderação, a prudência, a coragem, a tolerância, a generosidade, a humildade, a fidelidade, a polidez, etc... 

[2] É fato que, aprendemos hábitos, conhecemos coisas, refletimos sobre idéias e teorias, mas nossa educação não ensina sobre como devemos nos relacionar com os outros. No fundo, tendemos a ver o outro como um inferno (Sartre). O problema existencial do ser humano é conviver com o que é tolerável em relação ao outro. Fica a cargo da ambiência cultural e do desenvolvimento psíquico, aprendermos a superar nossa onipotência narcísica infantil, que abriria caminho para um radical e efetivo "exercício da tolerância", ou seja, aceitar a conviver com o outro como ele é e pensa. 

[3] Sabedoria (lat. Sagesse), não é apenas a prudência, mas “um perfeito conhecimento de tudo o que os homens podem saber". Inclui a humildade socrática, a disposição para o saber integral, o bom-senso e a arte de bem viver a vida. Diferente da ciência, a sabedoria não é para ser acumulada, mas para ser esquecida ao ser testada na prática da vida. O "velho sábio" chinês Lao Tsé, dizia que "sabedoria é esquecer saberes". Ou como dizia Sócrates, “a única coisa que sabia é que nada sabia”. O lugar do homem de sabedoria é o da humildade. Nesse sentido, a “sabedoria” se opõe aos “conhecimentos” (ou ”saberes”) fragmentados das especialidades científicas. O cientista (expert), pode ser um sujeito cheio de conhecimentos e, ao mesmo tempo, ser cego ao geral e inábil na prática cotidiana. Vive, por assim dizer, na contramão da sabedoria. “A sabedoria é desprovida de paixão, ao contrário da religião que é cheia de cor” (Wittgenstein). O princípio da Sabedoria é a capacidade do ser humano de unir partes ao todo, integrando-as na vida prática. No campo das ciências, o projeto inter e transdisciplinar parece sustentarem tal meta. Edgard Morin declara que o homem moderno aprendeu a fazer ciência, separando excessivamente as disciplinas, mas ainda não aprendeu a juntá-las. Unir esses conhecimentos, num todo teórico, complexo e prático diminuiria não só a alienação, o dogmatismo, a arrogância daqueles que detém o saber como um poder, mas se ampliaria o tratamento conceitual e prático sobre as coisas humanas e do mundo.

Referências bibliográficas:

COMTE-SPONVILLE, A. Pequeno tratado das grandes virtudes. SP: M. Fontes, 1995.
JANKÉLÉVITH, V. O paradoxo da moral. Campinas: Papirus, 1991.
LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico de filosofia. São Paulo, M. Fontes, 1993.
MATOS, O. Sociedade, tolerância, confiança, amizade. Folha de S. Paulo, cad. Mais! e www.librairie.hpg.ig.com.br/
OZ, A. “Seu discurso resiste ao silêncio”. Folha de S.Paulo, cad. Mais! 10/01/1999.
POPPER, K. R. Conjecturas e refutações.Brasília. UnB. (apud: COMTE-SPONVILLE, A. op.cit.)
ROUANET, S. P. O Eros das diferenças. Folha de S.Paulo, cad. Mais!, 9/2/03.
SARAMAGO, J. Entrevista. Folha de S.Paulo, 27/01/95.
ZIZEK, S. O paradigma da ideologia. Folha de S. Paulo, cad. Mais! 20/04/2003 


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