As Obrigações dos Maçons: II - Autoridade civil
Rui Bandeira
Um maçom é um súbdito pacífico do Poder Civil, onde quer que more ou trabalhe, nunca se envolverá em complôs ou conspirações contra a paz ou o bem-estar da nação e nem se comportará irresponsavelmente perante os agentes da autoridade; como a Maçonaria sempre foi prejudicada pelas guerras, derramamentos de sangue e desordens, os antigos Reis e Príncipes sempre se dispuseram a estimular os Homens da Fraternidade, por sua lealdade e índole pacífica; pois sempre responderam adequadamente às conspirações de seus adversários e promoveram a honra dessa Fraternidade, que sempre floresceu em tempos de paz. Se um Irmão se rebelar contra o Estado, não deverá ser incentivado na sua rebelião, antes ser digno de pena por ser um homem infeliz; e, se não tiver sido condenado por qualquer outro crime, a Irmandade precisa, e deve, repudiar a sua rebelião, não deixando margem para qualquer desconfiança política perante o Governo vigente; mas não deve expulsá-lo da Loja, permanecendo inalienável a sua relação com a mesma.
Esta segunda Obrigação dos maçons inscrita na Constituição de Anderson de 1723 constitui a clara e iniludível orientação estrita de que o maçom - e, por extensão, a própria Instituição Maçónica - se insere na legalidade vigente em cada sociedade. É uma consequência do princípio, ínsito na primeira Obrigação, da obediência à Lei Moral: se a Moral se baseia na Ética e é fundamento da norma, da lei, não faria sentido que aqueles que têm por dever primeiro a obediência à Lei Moral desobedecessem às normas sociais, resultantes da Moral vigente na Sociedade.
Tem justificação, porém, o argumento de que se a Lei viola a Moral Social, se é iníqua, não deve ser respeitada e se o Poder não é legítimo, é ditatorial ou opressivo, deve ser derrubado, pois a obediência às leis é corolário da obediência à Lei Moral, pelo que, se a norma é imoral ou o Poder se afasta da mesma, a obediência à Lei Moral impõe a desobediência da lei e a luta contra o Poder abusivo. O argumento é, manifestamente, ponderoso - como se evidencia pela sua simples enunciação e pela correção do silogismo que o sustenta: se a lei é imoral, então não é verdadeiramente lei, só aparentemente o é, pois o que viola a Moral vigente numa sociedade não pode ser obrigatório para os seus membros; se o Poder é abusivo, ditatorial, opressivo, viola a Moral da sociedade, que precisamente o considera abusivo, ditatorial, opressivo.
O problema - em contra-argumento - é que não existe um "moralómetro", um instrumento que permita medir a compatibilidade entre a Lei ou o Poder e a Moral social, sendo assim, no mínimo, subjetiva a determinação dessa compatibilidade ou incompatibilidade, pelo que o único critério admissível é o cumprimento da Lei vigente, cuja adoção resulta das normas criadas para a determinação do que deve ser considerado lei e que se destinam, além do mais, precisamente a garantir que a Lei seja a vera expressão da Moral Social vigente, e a sujeição ao Poder em funções, o qual resulta das normas de definição de quem tem direito à titularidade do exercício do Poder.
Mas - contrapõe-se ao contra-argumento - situações há em que o Poder é usurpado por quem, segundo as regras, a ele não tem direito - é a isso que se chama poder ditatorial... - e em que as leis são abusivamente criadas, em verdadeiro desvio de poder, para proteger interesses pessoais, mesquinhos, beneficiar quem as faz ou quem influencia quem as faz, em total desprezo ou, pelo menos, dessintonia com a Moral social, pelo que devem ser consideradas iníquas e imerecedoras de cumprimento. Além de que toda a gente sabe que, por exemplo, os nazis ascenderam ao Poder por via de eleições...
No entanto - riposta-se à contraposição - Poder vigente é Poder vigente e, por definição, se é Poder, implica sujeição ao mesmo. Se se põe em causa a legitimidade da ascensão por via de eleições dos nazis ao Poder, por mais execráveis que eles tenham sido, põe-se em causa os próprios fundamentos do regime democrático; se se põe em causa uma lei aprovada segundo as regras em vigor para a sua vigência, põe-se em causa toda a estrutura normativa e, logo, organizacional, da Sociedade. E, como lucidamente referiu Winston Churchill, "a Democracia é o pior de todos os sistemas políticos... exceto todos os outros!".
E, como este debate de mim para comigo mesmo o demonstra, poder-se-ia eternamente discutir estas duas posições opostas, sem se chegar a uma posição consensual passível de aplicação prática. A Maçonaria Regular desde o seu início que adotou o critério de que o Poder vigente é aquele que vigora, que a Lei a cumprir é a que está em vigor, ponto final parágrafo. A Maçonaria Regular não é contrapoder nem intervém politicamente, pelo que o único critério que adota é o do cumprimento da Lei vigente.
E então se o Poder é ditatorial, como fazer? Pura e simplesmente a Maçonaria Regular só atua em ambiente democrático, em Liberdade. Se estas condições não estão preenchidas, retira-se, suspende atividades, dos locais onde a Democracia não impera, o poder ditatorial vigora, onde não há, assim, garantia de que as leis sejam globalmente justas e conformes à Moral. É a única opção possível de uma Instituição que simultaneamente se impõe seguir a Moral e cumprir a Lei vigente, quando esta ou o Poder de facto em funções se afastam daquela.
A Maçonaria Regular só pode ser um espaço de Tolerância, uma sede de fraternal convívio de pessoas e de ideias diversas e díspares, um fórum de confronto de posições que podem ser antagónicas, mesmo inconciliáveis, mas que são suscetíveis de debate frutuoso, de entendimento e deteção de pontos de acordo, de determinação e limitação dos espaços de efetiva diferença, de fixação dos consensos possíveis e de aceitação das diferenças realmente existentes se atuar dentro da mais estrita legalidade, se nenhuma dúvida fundada o Poder tiver de que recusa e não pactua com qualquer atividade conspirativa. Se assim não for - quando assim não é... - sujeita-se a todas as retaliações, ao pagamento de elevado preço pela sua intervenção em campos que não são os seus.
Porém, em aparente conflito com esta orientação firme, prossegue a segunda Obrigação afirmando que se, apesar de tudo, apesar de violar a sua Obrigação, um maçom se rebelar contra o Poder, se conspirar, apesar de a Maçonaria Regular repudiar tal atitude e a ela se não associar, não deve expulsar o infrator, se ele não tiver sido condenado por outro crime.
Resulta esta determinação da aplicação do princípio da Tolerância, ínsito e essencial no ideário maçónico. O princípio da Tolerância pressupõe o indefetível respeito pelas opiniões, pelas posições, pelas opções, de cada um. ainda que delas sejamos discordantes - principalmente quando delas discordamos! O Outro tem tanto direito à sua opinião, às suas ideias, às suas opções quanto eu. Por muito que eu discorde delas, por muito que eu entenda que eu tenho razão e ele não, não posso, não devo, concluir que sou eu que estou sempre certo. Pode suceder que seja eu que estou errado e que seja o Outro que está certo. Como a inversa. Tenho assim que tolerar a divergente posição alheia, tal como tenho o direito de exigir que a minha posição seja tolerada pelos demais. Este é um corolário essencial e inalienável da Liberdade individual, da essencial Igualdade que os maçons respeitam e um pressuposto básico da Fraternidade que se pretende impere. Assim, apesar de tudo, a Tolerância impõe o respeito pela decisão, ainda que infratora, e proíbe a expulsão do infrator.
Há, no entanto, um limite absolutamente inultrapassável: a condenação por outro crime (pressupondo-se que o Poder ou a Lei vigentes já qualifiquem como crime a rebelião). Outro crime implica violação de outros preceitos legais, outras normas em princípio resultantes da Lei Moral que o maçom se compromete a cumprir. O maçom regular tem todo o direito a, individualmente, divergir politicamente. Nesse estrito limite, a sua divergência nunca será considerada infração maçónica. Mas não tem nunca o direito a ser um criminoso. Se o for, se infelizmente assim proceder, viola grave e insanavelmente a primeira das suas obrigações e tem de se sujeitar às consequências, designadamente à consequência de deixar de ser reconhecido como tal pelos maçons.
Fonte:
Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 131.
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