“UM MAÇOM”
(Voltaire)
Pseudônimo de FRANÇOIS-MARIE ARQUET, escritor francês (nasceu e morreu em Paris, 21/11/1694 - 30/5/1778). Originário, por parte de mãe, de uma família de pequena nobreza, fez os seus estudos no colégio Louis-le-Grand, então dirigido pelos jesuítas. Introduzido, ainda jovem na alta sociedade do seu tempo, Voltaire foi encarcerado durante 11 meses na bastilha, como responsável por um panfleto que não escrevera. Aproveita o tempo de prisão para escrever a sua primeira tragédia, Edipe, (Édipo) cujo sucesso, em 1718, abre-lhe o acesso aos meios intelectuais. E, conseqüencia de desentendimento com um nobre, Voltaire é obrigado a expatriar-se na Inglaterra, onde viveu três anos, a partir de 1726. Escreve então um dos seus livros importantes, Les Lettres Angalaises ou Philosophiques (1794); e nas quais compara o liberalismo das instituições e dos costumes britânicos com o absolutismo reinante na França.
Eleito em 1746 para a Academia Francesa, Voltaire, cinco anos depois, aceita o convite do imperador da Prússia, Frederico II, e vai morar nas cortes alemãs de Berlim e Potsdam, de onde, ao fim de três anos e de desinteligências com o soberano, regressou à França. Temendo as perseguições, sempre possíveis do poder absoluto e desejando resguardar sua liberdade de escritor, decide fixar-se fora de Paris, a princípio no domínio Les Délices, e, mais tarde, no castelo de Ferney, onde reside até o fim da vida (1758-78). É aí que transcorre a fase mais combativa da vida e da obra de Voltaire, pois a maioria das suas criações literárias foi publicada nos anos anteriores.
Voltaire encarnou como ninguém a figura do filósofo setecentista, definido por Diderot como gentil-homem que sempre se conduz pela razão e que junta ao espírito de reflexão e de justeza os costumes e as qualidades sociais. Com efeito, o racionalismo está na base mesmo do seu espírito; na luta entre a filosofia e a Igreja (e não contra a religião, como geralmente se diz), é sempre à razão que Voltaire pede os seus argumentos e pontos de vista. Da mesma forma, desejando, não a revolução, mas a reforma das instituições monárquicas, pregando a tolerância ideológica ou defendendo o que hoje se chamaria de os direitos civis é sempre uma atitude racional da inteligência que define as posições de Voltaire. Justamente o intelectualismo o impediu de ser grande poeta ou de aceitar as inteligências místicas, do tipo das de Pascal ou Rousseau. Por outro lado, se elevou o chamado conto filosófico à sua mais alta perfeição, sua prosa é talvez inadequada para certos gêneros, como a historiografia, por exemplo. La Siècle de Louis XIV (1751), é antes uma crônica da época do que um tratado histórico no sentido moderno da palavra.
Contudo, o verdadeiro Voltaire não deve ser procurado nem nas tragédias, nem nos poemas épicos, quer se trate de uma epopéia burlesca, como La Pucelle d´Orléans (1755), quer se trate de uma epopéia heróica, como La Henriade (1723). O mais autêntico Voltaire está no Dictionnaire Philosophique (1764), nos seus numerosos panfletos, nas Cartas Inglesas e nos contos, de que Candide (1759) é, ao mesmo tempo, a obra-prima e o título mais conhecido. Acrescente-se que sua obra, em certo sentido, é menos importante literária ou ideologicamente do que do ponto de vista histórico; por ter escrito o que escreveu no momento em que o escreveu, por ter tido as suas idéias na época em que as teve, é que Voltaire se constitui num dos cimos do pensamento humano e uma das glórias mais indiscutíveis na história da inteligência. Acima de tudo, foi ele um escritor, isto é, um homem cuja biografia é a história dos seus livros, e que fez da palavra escrita o instrumento por excelência da reforma social.
Sua grande inteligência aliada a uma ironia fina e sutil mas de enorme contundência, fê-lo o homem mais importante do século XVII, ao mesmo tempo que grangeou-lhe vários inimigos.
Suas frases perduraram através dos tempos sendo, talvez, as mais conhecidas: Ainda que não concorde com uma só de suas palavras, lutarei até o final de minhas forças para que tenhas o direito de dizê-las. O mundo só será feliz quando o último general for enforcado nas tripas do último padre.
Foi iniciado na Maçonaria aos 80 anos, tendo, portanto, vivido quatro anos como Maçom ativo e diligente. Sobre a Maçonaria deixou a seguinte definição: A maçonaria é a entidade mais sublime que conheci, é uma instituição fraternal, na qual se ingressa para dar e que procura meios pára fazer o bem, exercitar a beneficência, como um dos processos para conseguir a perfectibilidade objetiva. Será extraordinariamente sublime se a maioria dos gênios da ação e do pensamento pertencerem à maçonaria.
Sua definição é maios valiosa quando se sabe de sua enorme coragem pessoal, quando viveu cada momento de perigo sem abdicar de seus princípios.
Transcreve-se, a seguir, a primeira carta do seu “Cartas Inglesas” ou “Cartas Filosóficas”, para que se possa avaliar um pequeno traço de sua personalidade.
PRIMEIRA CARTA
(Sobre os Quacres)
Acreditei que a doutrina e a história de um povo tão extraordinário mereciam a curiosidade de um homem sensato.
Para informar-me a esse respeito procurei um dos mais célebres quacres da Inglaterra, que, após trinta anos de comércio, soubera impor limites à sua fortuna e aos seus desejos, retirando-se para um campo próximo de Londres. Fui procurá-lo em seu retiro, casa pequena, mas bem construída, muito limpa e sem enfeites. O quacre era um velhote viçoso que nunca ficara doente porque jamais conhecera paixões e intemperança. Em toda minha vida nunca vi um ar mais nobre nem mais acolhedor do que o seu. Estava vestido, como todos os de sua religião, com uma roupa sem pregas nos lados, sem botões nos bolsos e nas mangas, trazendo um chapelão de abas caídas, como o de nossos eclesiásticos. Recebeu-me de chapéu, adiantou-se até mim sem inclinar o corpo, e, no entanto, havia mais delicadeza no ar franco e humano de seu rosto do que aquela presente no hábito de puxar uma perna para trás da outra e de carregar na mão aquilo que foi feito para cobrir a cabeças.
“Amigo”, disse-me. “Vejo que és estrangeiro. Se te posso ser útil, basta que o digas”. “Senhor”, respondi-lhe, curvando o corpo e deslizando um pé em sua direção, segundo o nosso costume, “estou certo de que minha justa curiosidade não vos desagradará, e que gostareis de instruir-me a respeito de vossa religião”. “A gente de teu país”, respondeu-me, “faz muitos cumprimentos e reverências”. Após uma refeição sadia e frugal, iniciada e terminada com uma prece a Deus, comecei a interrogar meu homem. Iniciei pela questão que os bons católicos puseram mais de uma vez aos huguenotes: “Meu caro senhor, sois batizado?” “Não”, respondeu-me o quacre, “nem meus confrades o são”. “Como? Raios!”, retorqui. “Então não sois cristãos?” “Meu filho”, retomou ele docemente, “não pragueje. Somos cristãos e tentamos ser bons cristãos, mas não pensamos que o cristianismo consista em jogar água fria com um pouco de sal sobre a cabeça.” “Ei, diabos!” retruquei, indignado com tal impiedade. “Esquecestes que Jesus Cristo foi batizado por João?” “Amigo, nada de pragas”, disse o benigno quacre. “O Cristo recebeu o batismo de João, mas nunca batizou alguém; não somos discípulos de João, mas de Cristo”. “Ai, como seríeis queimado em pais de Inquisição, pobre homem”, respondi-lhe. “Que eu vos batize e vos faça cristão!” “Se precisássemos condescender com a tua fraqueza, nós o faríamos de bom grado”, disse-me gravemente; “não condenamos quem pratica a cerimônia do batismo, mas cremos que aqueles que professam uma religião saudável e espiritual devem abster-se, na medida do possível, das cerimônias judaicas.” “Ora, vejam só! Cerimônias judaicas!” “Sim, meu filho”, continuou, “tão judaicas que muitos judeus ainda hoje realizam o batismo de João. Consulta a Antiguidade. Ensinar-te-á que João apenas renovou essa prática, já em uso desde havia muito entre os hebreus, como a peregrinação a Meca entre os ismaelitas. Jesus aceitou receber o batismo de João, assim como se submeteu à circuncisão, mas essas duas práticas devem ser abolidas pelo batismo de Cristo. Batismo do espírito, ablução da alma, que salva os homens. O precursor João dizia: “Em verdade, vos batizo com água, mas um outro virá depois de mim, mais potente do que eu e cujas sandálias sou indigno de usar; esse batizará com fogo e com o Santo Espírito”. Da mesma maneira, o grande apóstolo dos gentios, Paulo, escreve aos Coríntios: ‘O Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o Evangelho’. E este mesmo Paulo só batizou com água duas pessoas e, ainda assim, contra sua própria vontade. Circuncidou seu discípulo Timóteo, e os demais apóstolos também circuncidaram todos os que o quiseram. És circunciso?”, acrescentou. Respondi-lhe que não tinha essa honra. “Pois bem, amigo”, concluiu, “és cristão sem seres circunciso e eu, sem ser batizado”.
Eis como meu santo homem abusava especiosamente de três ou quatro passagens da Santas Escrituras que pareciam favorecer sua seita, mas com a melhor boa fé do mundo esquecia uma centena de passagens que a esmagavam. Cuidei para não contestá-lo em nada. Com um entusiasta nada se tem a ganhar. Não se deve ter a lembrança de mostrar a um homem os defeitos de sua amante, nem a um defensor, a fraqueza de sua causa, nem razões a um iluminado. Assim, passei a outras questões: “Com respeito à comunhão, como estais habituados?” “Não estamos habituados”, respondeu. “Como? Nada de comunhão?” “Não. Nenhuma, senão a dos corações” E citou-me, então, ainda uma vez as Escrituras. Fez-me um belíssimo sermão contra a comunhão e falou-me, num tom inspirado, para provar-me que todos os sacramentos não se encontravam uma única vez nos Evangelhos. “Perdoa minha ignorância”, disse-me, “não te forneci a centésima parte das provas de minha religião, mas podes vê-las na exposição de nossa fé por Robert Barclay. É um dos melhores livros que já saíram das mãos de um homem. Nossos inimigos concordam em que é muito perigoso, o que prova como é razoável”. Prometi-lhe ler o livro e meu quacre já acreditou-me convertido.
Em seguida, explicou-me em poucas palavras algumas singularidades que expõem sua seita ao desprezo das outras. “Confessa que tiveste dificuldade para impedir o riso quando respondi a todas as tuas cortesias com meu chapéu sobre a cabeça e te tuteando. No entanto, pareces bastante instruído e não podes ignorar que no tempo do Cristo nenhuma nação caía no ridículo por substituir o plural pelo singular. Dizia-se a César Augusto: amo-te, peço-te, agradeço-te. Aliás, não suportava que o chamassem de Senhor, Dominus. Só muito depois dele os homens resolveram fazer-se chamar por “vós” em vez de “tu”, como se fossem duplos, e usurpar os títulos impertinentes de Grandeza, Eminência, Santidade, dados pelos vermes da terra a outros vermes da terra, assegurando-lhes, com profundo respeito e infame falsidade, que são seus servidores muito humildes e obedientes. Como nos precavemos contra esse indigno comércio de mentiras e adulações, tuteamos igualmente os reis e os sapateiros, não saudamos ninguém. Temos pelos homens apenas a caridade, e o respeito apenas pelas leis.”
“Nossa roupa, um pouco diferente da dos outros homens, é um aviso contínuo para que não nos assemelhemos a eles. Os outros trazem as marcas de suas dignidades; nós, as da humildade cristã. Fugimos das assembléias de prazer, dos espetáculos, do jogo, porque seríamos lastimáveis se enchêssemos com tais bagatelas corações que Deus deve habitar. Nunca fazemos juramento, mesmo em justiça. Pensamos que o nome do Altíssimo não deve ser prostituído nos debates miseráveis dos homens. Quando é preciso que compareçamos diante dos magistrados pelos negócios dos outros (pois nunca temos processos), afirmamos a verdade por ‘sim’ e por ‘não’, e os juízes nos acreditam sob simples palavra, enquanto tantos cristãos perjuram sobre o Evangelho. Nunca vamos à guerra, não porque temamos a morte; ao contrário, bendizemos o momento que nos une ao Ser de todos os Seres, mas porque não somos lobos, tigres ou cães e sim homens, cristãos. Nosso Deus, que ordenou o amor aos inimigos e o sofrimento sem lamúrias, não há de querer, sem dúvida, que atravessemos o mar para ir degolar nossos irmãos, só porque assassinos vestidos de vermelho, com um gorro de dois pés de altura, recrutam cidadãos, fazendo ruído com dois bastões sobre uma pelo de asno bem esticada. Quando, após as batalhas ganhas, Londres inteira brilha iluminada, o céu incendiado de fotos, o ar ressoando com o barulho das ações de graças, dos sinos, dos órgãos, dos canhões, gememos em silêncio sobre os assassínios que causam a alegria pública”. (Desconheço o autor)
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