O AGIR MORALÀ LUZ DA LIBERDADE E DA RESPONSABILIDADE
Autor: Edir Martins Moreira
Introdução
Paulo já lançara as bases de uma ética para a vida[1]. No alvorecer do cristianismo, a originalidade da proposta desenvolvida por Paulo consistiu em aliar a liberdade à responsabilidade: “tudo me é permitido, mas nem tudo convém”[2]. Todos os seres humanos prezam a liberdade, tendo sido criados para ela. Para não diminuí-la ou até destruí-la, no entanto, requer-se que se viva com responsabilidade.
Em tempos mais recentes, o Vaticano II resgatou essa intuição, sobretudo, com a Gaudium et Spes, atribuindo grande valor à consciência: “a consciência é o sacrário das pessoas”[3]. Vê-se aí a enorme importância dada às decisões individuais. Até então, o que trazia tranquilidade moral às pessoas de fé era o seguimento às normas. O importante era “enquadrar-se” nas leis. O que vigorava era a heteronomia moral. De agora em diante, as leis passam a funcionar como importantes subsídios, mas nunca como elementos decisórios às pessoas. A última palavra é sempre dada pela pessoa, em consonância com seu contexto vital (Sitz im Leben), seu desenvolvimento psíquico e sua situação particular. O que passa a vigorar é a defesa da autonomia moral.
Por conseguinte, permeando o horizonte da ética, é possível encontrar um grande desafio lançado a todo ser humano: saber discernir quais são os melhores caminhos a serem percorridos no dia-a-dia. “O sentido da responsabilidade é uma atitude do homem total que o impele a colocar-se em situação de radical disponibilidade quanto aos imperativos morais”[4].É assim que a pessoa se realiza e edifica o mundo à sua volta.
A liberdade se exerce no relacionamento entre os seres humanos. Dessa forma, toda pessoa tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável[5]. “Quanto mais pratica o bem, mais a pessoa se torna livre. Não há verdadeira liberdade a não ser a serviço do bem e da justiça. A escolha da desobediência e do mal é um abuso de liberdade e conduz à ‘escravidão’”[6].
Em tempos de pensamento fraco e de relativismo, nesse contexto do século XXI, onde até o amor é tido como líquido, é mais do que oportuno revisitar as intuições éticas que nos foram legadas na Tradição.
O amor: fundamento da liberdade responsável
Antes de tudo é preciso explicitar o que se entende por liberdade. Para esta nossa reflexão podemos entender que “liberdade consiste em permanecer aberto e disponível para escolher o que há de melhor, de mais conveniente em cada circunstância. O Espírito torna a pessoa apta para uma verdadeira opção e suprime a necessidade de buscar sempre a própria vantagem ou a própria segurança”[7].
A categoria da responsabilidade é uma das mais mais importantes em termos de moralidade. “Somente um comportamento responsável é comportamento moral”[8]. Trata-se de um tema complexo, visto que toda a pessoa, de forma integral, deve ser levada em conta na hora de estudar a categoria antropológica da responsabilidade.
Frente a uma situação sócio-cultural, eclesial e societária onde vive-se a falta de liberdade criativa e de uma ação ousada, alternativa e esperançosa, queremos encontrar caminho para uma experiência nova e concreta. Sabemos que é imprescindível assumir a vida com responsabilidade e superar toda “escravidão”, em outras palavras, o que vale é viver em liberdade na experiência do amor diante do império da impotência e da morte. Toda reflexão tem que levar ao agir ético que revele uma vida livre e construtora de uma nova realidade, de relacionamento e de compromisso no atual contexto[9].
Faz-se necessário, com certa urgência, que sejam encontrados critérios ético-filosófico-teológicos para um repensar à moral. Daí, é possível uma reorientação do comportamento humano em vista de uma práxis mais humana, alternativa e libertadora, sobretudo frente a um contexto fundamentalista, conservador e acomodado, no intuito de trazer luz e novidade para o agir. Significa ter a lucidez de traduzir e testemunhar em concreto o cerne da reflexão ética.
A verdadeira liberdade nada mais é que um sinal eminente da consciência no homem, pois ela inclusive deixa ao homem o poder de decidir. Diante de uma proposta nova e radical para a experiência existencial dos seres humanos, a liberdade, que relativiza as normas e exige que a pessoa humana assuma com responsabilidade a vida, dá uma perspectiva nova e ousada de como viver uma verdadeira não escravidão. A liberdade é um dos elementos éticos fundamentais do ser humano.
Trata-se realmente da valorização da liberdade, por outro lado, chama-se a atenção para determinados comportamentos que, desencadeados pelo próprio ser humano podem torná-lo escravo. Alerta, então, para a vigilância. Somente quem é vigilante mantém sólida sua liberdade e nela cresce: “tomai cuidado para que a vossa liberdade não se torne ocasião de queda para os fracos”[10], afirma Paulo. A recomendação é a de que se mantenha sempre a sadia humildade e o respeito, em todas as dimensões, perante as outras pessoas. Liberdade com responsabilidade! Isso significa uma verdadeira adesão e compreensão de uma maneira nova de pensar a si mesmo, aos outros e às relações humanas.
A partir do momento em que se consente em viver segundo as proposições da vontade, o sujeito vai se capacitando a descobrir por si mesmo o caminho a seguir no cotidiano de sua vida. Muitas vezes, mesmo o autêntico pensador se vê preso à cultura das imagens na qual nos encontramos. Uma forma de ver o mundo “que trocou a reflexão pela emoção, o espírito crítico pelo espetáculo animado”[11]. Essa cultura estimula o individualismo, desarticulando iniciativas éticas dos que procuram se organizar para atender às necessidades dos outros.
Em meio ao crepúsculo do dever de um mundo hiper-individualista, também deve haver lugar para iniciativas de pessoas mais ousadas. “Ousar é mover-se e agir com destemor. Ousar é desprender-se do lugar onde se está. Ousar é desamarrar-se, é lançar-se, é atirar-se a um projeto. É atitude corajosa, é ímpeto arriscado… Ousar é promover a dignidade da pessoa humana que está sendo violentada pela crueldade e envergonhada pela miséria. Ousar é abrir clareiras que permitem enxergar horizontes fecundos para o futuro da humanidade”[12].
Portanto, o fundamental é construir uma vida alicerçada no amor, e não num sistema (de preceitos, leis, normas, estruturas, costumes, etc.). O fundamental para que as relações pessoais e comunitárias possam gerar a vida é o amor. Toda lei fica aquém da experiência do amor.
A experiência de fé e o agir ético
Uma vivência marcada pelo compromisso amoroso, o qual acolhe incondicionalmente, e que deseja a mudança para o bem da pessoa, e não para satisfazer estruturas, autoridades, vai encontrando forças para um “salto qualitativo” da ação ética. A práxis ética é a escolha de um modo de ser que é essencialmente social, ou seja, uma nova maneira de ser com os outros e contribui com um novo modus vivendi.
Nesse sentido, para que cada indivíduo cumpra com mais solicitude o seu dever, ele deve ser educado com diligência para tal. O homem dificilmente chega a um sentido de responsabilidade se as suas condições de vida não lhe possibilitam tomar consciência da dignidade da pessoa humana, tanto em relação a si mesmo quanto a outrem. Por isso, ao analisar as fontes da ética filosófica, temos comprovado que o ideal de perfeição moral nelas contido apresenta um caráter prático. Sendo assim, a pessoa, com seus comportamentos, vai realizando o ideal de perfeição que lhe é peculiar: fazer o bem[13].
A experiência vai apontando para atitudes positivas e maduras, que assumem os “riscos” da liberdade. Inclusive, para não haver desvios em nome da fé, como tem acontecido na história, é importante entender qual o lugar da fé na experiência cristã. A fé é um aspecto dum sistema de vida e do mundo que “supera a lei”: uma maneira de se viver que não favorece uma submissão a um sistema de opressão ou de morte. Ou seja: “é a fé na força de Jesus que supera toda lei, cria no homem uma liberdade nova pela qual o homem se torna capaz de agir por amor. A fé é aquela que atua pela caridade não somente a partir da lei ou da obediência à mesma, mas da espontaneidade e da liberdade do amor. A fé é o caminho que desemboca na liberdade”[14].
Viver é lançar-se à experiência do novo, do risco e da incerteza. Dentro dos diversos contextos, é o Espírito que inspira e leva a pessoa humana a um discernimento, tornando-a apta para escolher de acordo com o bem de toda a humanidade. Não há sistema ou estrutura que sejam portadores do Espírito por si próprios, por isso o Espírito capacita, à luz do discernimento, para a escolha do que edifica. Enfim, não cabe a ninguém receber um sistema pré-fabricado de preceitos, normas. A exigência é discernir em todos os momentos da história pessoal, familiar, eclesial e societária, quais são as possibilidades mais convenientes, as que estão de acordo com a promoção da vida do povo de Deus[15].
Conclusão
O essencial, moralmente afirmando, é agir segundo a voz da própria consciência, tendo sempre presente que enquanto se vive há a obrigação de aperfeiçoar essa voz, em consonância com o querer de Deus para o presente histórico de cada pessoa. Encontramos aí uma das “exigências” para o cristão verdadeiro.
Nos últimos anos, alastra-se mundo afora determinada cultura defensora do indiferentismo. Livros que defendem o ateísmo são bastante veiculados. Se à nossa volta a imensa maioria das pessoas afirmam crer, na prática vive-se uma fé infantil. Essa postura reflete-se, também, na moral cristã. Declarações oficiais da Igreja são relativizadas ou ignoradas até mesmo por pessoas que têm prática religiosa com certa regularidade. A superficialidade religiosa reflete-se na superficialidade dos comportamentos morais.
A vida não pode ser pautada simplesmente por um preceito obrigatório. O risco é cair na inautenticidade, pelo fato de que uma vida a partir da legislação pode levar à “uniformidade da ação”. Torna-se uma ação por obrigação, não por livre escolha, isso não é liberdade, mas escravidão. Contudo, o preço da liberdade é a obrigação de escolher e, portanto, de assumir responsabilidades.
A verdadeira liberdade ética é fruto de uma experiência comunitária e de uma responsabilidade social. A comunidade é o “verdadeiro sujeito moral”. Viver a partir de uma atitude individualista e irresponsável diante do outro é morrer para uma experiência de autenticidade.
A fé é um lançar-se para frente, é conquistar a estrada da liberdade diante das injustiças. A fé é um risco e uma aposta, não se sabe o que vem depois e acredita-se no caminho da vida. A partir da fé tudo recebe nova iluminação, profundidade, valor e sentido. É um ato ligado ao agir, nele o ser humano é provocado a descobrir a presença do outro, e ter compaixão do que sofre, a viver a tensão dialética entre o pessoal e o social.
Nesse sentido, ainda que num contexto de interrogações, para o cristão deve permanecer clara a consciência de que o fato de crer em Jesus Cristo interessa à vida da pessoa na sua totalidade e perpassa inteiramente toda a responsabilidade, nos vários níveis de suas livres decisões. O comportamento moral, então, apresenta-se como uma situação favorável para a verificação da sinceridade da adesão à fé[16].
Um agir moral que humaniza e liberta tem que nascer de uma experiência de fé que abre os olhos, dá sensibilidade e comunhão com cada realidade, e faz acreditar que é possível mudar tudo aquilo que discrimina e escraviza a vida. Uma sociedade só é sólida se os membros que a formam forem portadores de valores sólidos. Para isso, é necessária a preocupação com os valores éticos que oxigenam a vida da sociedade.
Fonte: Consciencia.org
Notas
[1] – MATTOS, Luiz Augusto de. Paulo e a ética da liberdade. Disp. in: http://www.teologia-assuncao.br/reeletronica/numeros/n3/n3_luizaugusto.html
[2] – BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1Cor 6,12.
[3] – CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Gaudium et Spes, nº 16.
[4] – HORTELANO, Antonio. Moral responsável, p. 268.
[5] – CIC, 1738.
[6] – CIC, 1733.
[7] – COMBLIN, José. O espírito no mundo, p. 65.
[8] – VIDAL, Marciano. Moral de atitudes, p. 187.
[9] – HORTELANO, Antonio. Moral responsável, p. 268-269.
[10] – BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1Cor 8,9
[11] – LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção, p. 57.
[12] – ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade, p. 40.
[13] – WOJTYLA, Karol. Max Scheler e a ética cristã, p. 93.
[14] – COMBLIN, José. A liberdade cristã, p. 23.
[15] – COMBLIN, José. O espírito no mundo, p. 66.
[16] – VIDAL, Marciano. Dicionário de Teologia Moral, p. 400.
Referências bibliográficas
ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 5º impressão. São Paulo: Paulus, 2008.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Trad. da CNBB. São Paulo: Loyola, 1999.
COMBLIN, José. A liberdade cristã. Petrópolis: Vozes, 1977.
COMBLIN, José. O espírito no mundo. Petrópolis: Vozes, 1978.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Gaudium et Spes, in: Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações. 29.ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
HÄRING, B. Práxis Cristã (moral fundamental), vol. 1. São Paulo: Paulus, 1983.
HORTELANO, Antonio. Moral responsável. Lisboa: Edições Paulistas, 1970.
KLOPPENBURG, Boaventura. O cristão secularizado. Petrópolis: Vozes, 1970.
LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Barueri: Manole, 2007.
MATTOS, Luiz Augusto de. Paulo e a ética da liberdade: por um agir humanizador e libertador da vida. Disp. in: http://www.teologia-assuncao.br/re-eletronica/numeros/n3/n3_luizaugusto.html, acessado em 24/08/09.
MESTERS, Carlos. Carta aos romanos. São Paulo: Paulinas, 1983.
VIDAL, Marciano. Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997.
VIDAL, Marciano. Moral de atitudes (moral fundamental, vol. 1). 3.ed. Aparecida: Santuário, 1978.
WOJTYLA, Karol. Max Scheler e a ética cristã. Trad. de: Diva Toledo Pisa. Curitiba: Champagnat, 1993.
Fonte: https://opontodentrocirculo.com
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