A ORDEM NA VISÃO DE FERNANDO PESSOA
Irm:. Antonio Alves Rodrigues Calado
Com a intenção de fazer mais conhecidas, entre nossos Irmãos, as
idéias de Fernando Pessoa, um dos maiores escritores portugueses
contemporâneos, e de todos os tempos, que nunca foi Maçom, mas que tinha um
profundo conhecimento das coisas da Ordem, como aliás, também o tinha sobre
espiritismo, esoterismo, ocultismo, paganismo, Cristianismo e muitos outros
campos do conhecimento humano, aos quais um homem pode chegar, não por
pertencer a qualquer deles mas simplesmente por muito estudá-los, desejo dar
a contribuição que se segue, desejando seja ela do agrado de todos. Avaliando
um projeto do deputado José Cabral de Lisboa, cuja finalidade era suprimir a
Ordem em Portugal, assim se expressou, através do Diário de Lisboa, jornal
dos mas respeitados do país:
Estreou-se a Assembléia Nacional, do ponto de vista
legislativo, com a apresentação, por um deputado, de projeto de lei sobre
"associações secretas". De tal ordem é o projeto, tanto em sua
natureza como em seu conteúdo, que não há que felicitar o atual Parlamento
por lhe ter sido dada essa estréia. Antes há que dizer-lhe Absit omen!, ou seja,
em português, Longe vá o agouro!. Apresentou o projeto o Sr. José Cabral,
que, se não é dominicano, deveria sê-lo, de tal modo o seu trabalho se
integra, em natureza, como em conteúdo, nas melhores tradições dos
Inquisidores. O projeto, que todos terão lido nos jornais, estabelece várias
e fortes sanções (com exceção da pena de morte) para todos quantos pertençam
ao que o seu autor chama "Associações secretas sejam quais forem os seus
fins e organização".
Dada a latitude desta definição, e considerando que
por "associação" se entende um agrupamento mais ou menos permanente
de homens, ligados por fim comum, e que por "secreto" se entende o
que, pelo menos parcialmente, se não faz à vista do público, ou, feito, se
não torna inteiramente público, posso, desde já, denunciar ao Sr. José Cabral
uma associação secreta – o Conselho de Ministros. De resto, tudo quanto de
sério ou de importante se faz em reunião neste mundo, faz-se secretamente. Se
não reúnem em público os conselhos de ministros, também o não fazem as
direções dos partidos políticos, as tenebrosas figuras que orientam os clubes
desportivos, ou os sinistros comunistas que formam os conselhos de
administração das companhias comerciais e industriais. Embora uma
interpretação desta ordem legitimamente se extraia da frasear pouco
nacionalista do Sr. José Cabral, creio, tanto porque assim deve ser, como
pelos encômios com que o projeto foi afagado pela imprensa pseudocristã, que
as "associações secretas", que ele verdadeiramente visa, são aquelas
que envolvem o que se chama "iniciação", e portanto o segredo
especial a esta inerente. Ora no nosso país, caída há muito em dormência a
Ordem Templária de Portugal, desaparecida a Carbonária – formada para fins
transitórios, que se realizaram –, não existem, suponho, à parte uma outra
possível Loja martinista ou semelhante, mais do que duas associações secretas
"dessa espécie". Uma é a Maçonaria, a outra essa curiosa
organização que, em um dos seus ramos, usa o nome profano de "Companhia
de Jesus", exatamente como, na Maçonaria, a Ordem de Heredom e
Kilwinning usa o nome profano de Real Ordem da Escócia. Dos chamados jesuítas
não tratarei, e por três motivos, dos quais calarei o primeiro. Os outros
dois são: que não creio, por mais razões do que uma, que eles correm risco
de, aprovado que fosse o projeto, lhes serem aplicadas as suas sanções; e que
não creio, por uma razão só, que o Sr. José Cabral tenha pretendido que tal
aplicação se fizesse. Presumo pois que o projeto de lei do urgente deputado
se dirija, total ou principalmente, contra a Ordem Maçônica. Como tal o
examinarei. Não faço, creio, ofensa ao Sr. José Cabral em supor que, como a
maioria dos Antimaçons, o autor deste projeto é totalmente desconhecedor do
assunto Maçonaria. O que sabe dele é até, porventura, pior que nada, pois,
naturalmente, terá nutrido o seu antimaçonismo da leitura da imprensa chamada
católica, onde, até nas coisas mais elementares na matéria, erros se acumulam
sobre erros, e aos erros se junta, com a má-vontade, a mentira e a calúnia,
senhoras suas filhas. Não creio que o Sr. José Cabral conviva habitualmente
com os livros de Findel, Kloss ou Gould, ou que passe as suas horas de ócio
na leitura atenta da "Ars Quatuor Coronatorum" ou das publicações
de Grande Loja de Iowa.
Duvido, até, que o Sr. José Cabral tenha grande
conhecimento da literatura antimaçônica – Barruel ou Robinson, ou Eckert –
tão admirável, aliás, do ponto de vista humorístico. Nem terá tido porventura
noção, sequer de ouvido, do artigo célebre do Padre Hermann Grüber na
"Catholic Encyclopedia", artigo citado com elogio em livros
maçônicos, e em que o doutor jesuíta por pouco não defende a Maçonaria. Ora
se o Sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à natureza,
fins e organização da Ordem Maçônica, suponho que em igual condição estejam
muitos dos outros membros da Assembléia Nacional, com a diferença que não se
propuseram legislar sobre matéria que ignoram. Sendo assim, nem o deputado
apresentante, nem os seus colegas de assembléia, estarão, talvez, em estado
de medir claramente as conseqüências nacionais, internas e sobretudo
externas, que adviriam da aprovação do projeto. Como conheço o assunto
suficientemente para saber de antemão, e com certeza, quais seriam essas
conseqüências, vou fazer patrioticamente presente da minha ciência ao Sr.
José Cabral e à Assembléia Legislativa de que é ornamento. Começo por uma
referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou
Maçom, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente. Não sou
porém Antimaçom, pois o que sei do assunto me leva a ter uma idéia
absolutamente favorável da Ordem Maçônica. A estas duas circunstâncias, que
em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de
que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte
oculta da Maçonaria – parte que nada tem de político ou social –, fui
necessariamente levado a estudar também esse assunto – assunto muito belo,
mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém,
certa preparação, cuja natureza me não proponho indicar, pude ir, embora
lentamente, compreendendo o que lia e sabendo meditar o que compreendia.
Posso hoje dizer, sem que use excesso de vaidade, que pouca gente haverá,
fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra parte, que tanto tenha
conseguido entranhar-se na alma daquela vida, e portanto, e derivadamente,
nos seus aspectos por assim dizer externos. Se falo de mim, e deste modo, é
para que o Sr. José Cabral e os colegas legisladores saibam perfeitamente
quem lhes está falando, e que o que vão ler, se quiserem, é escrito por quem
sabe o que está escrevendo. Não que o que vou dizer exija profundos
conhecimentos maçônicos: é matéria puramente de superfície, da vida externa
da Ordem. Exige porém conhecimentos, e não ignorâncias, fantasias ou
mentiras. Começo a valer. Creio não errar ao presumir que o Sr. José Cabral
supõe que a Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A Maçonaria é uma
"Ordem" secreta, ou, com plena propriedade, uma "Ordem
iniciática". O Sr. José Cabral não sabe, provavelmente, em que consiste
a diferença. Pois o mal é esse – não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá de
continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz. Forneço-lhe,
em todo o caso, uma espécie de meia luz, qualquer coisa como a "treva
visível" de certo grande ritual.
Vou insinuar-lhe o que é essa diferença, o que em
linguagem maçônica se chama "termos de substituição". A Ordem
Maçônica é secreta por uma razão indireta e derivada – a mesma razão porque
eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos primitivos cristãos, que
se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em o que hoje se chamariam Lojas
ou Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de
reconhecimento – toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse. Por
esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos
do Império – precisamente os mesmos termos com que hoje os Maçons são
brindados pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez ilegítima, daquela
Maçonaria remota. Feito assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro
diretamente no que verdadeiramente interessa – as conseqüências que adviriam,
para o país, da aprovação do projeto de lei do Sr. José Cabral. Tratarei
primeiro das conseqüências internas. A primeira conseqüência seria esta –
coisa nenhuma. Se o Sr. José Cabral cuida que ele, ou a Assembléia Nacional,
ou o Governo, ou quem quer que seja, pode extinguir o Grande Oriente
Lusitano, fique desde já desenganado. As Ordens Iniciáticas estão defendidas,
"ab origine symboli", por condições e Forças muito especiais que as
tornam indestrutíveis "de fora". Não me proponho explicar o que
sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência. De resto,
têm os srs. deputados a prova prática em que o que tem sucedido noutros
países, onde se tem pretendido suprimir as Obediências Maçônicas. Pondo de
parte a Rússia – onde nem eu nem os srs. deputados sabem o que
verdadeiramente se passa, e onde, aliás, que não havia Maçonaria –, poderemos
considerar os casos da Itália, da Espanha e da Alemanha. Mussolini procedeu
contra a Maçonaria, isto é, contra o Grande Oriente de Itália mais ou menos
nos termos pagãos do projeto do Sr. José Cabral. Não sei se perseguiu muita
gente, nem me importa saber. O que sei, de ciência certa, é que o Grande
Oriente de Itália é um daqueles mortos que continuam de perfeita saúde.
Mantém-se, concentra-se, tem-se depurado, e lá está à espera; se tem em que
esperar é outro assunto. O camartelo do Duce pode destruir o edifício do
comunismo italiano; mas não tem Força para abater colunas simbólicas, vazadas
dum metal que procede da Alquimia. Primo da Rivera procedeu mais brandamente,
conforme a sua índole fidalga, contra a Maçonaria Espanhola.
Também sei ao certo qual foi o resultado – o grande
desenvolvimento, tanto numérico como político, da Maçonaria em Espanha. Não
sei se alguns fenômenos secundários, como, por exemplo, a queda da Monarquia,
teriam qualquer relação com esse fato. Hitler, depois de se ter apoiado nas
três Grandes Lojas cristãs da Prússia, procedeu segundo o seu admirável
costume ariano de morder a mão que lhe dera de comer. Deixou em paz as outras
Grandes Lojas – as que o não tinham apoiado nem eram cristãs – e, por
intermédio de um tal Goering, intimou aquelas três a dissolverem-se. Elas
disseram que sim – aos Goerings diz-se sempre que sim – e continuaram a
existir. Por coincidência, foi depois de se tomar essa medida que começaram a
surgir cisões e outras dificuldades dentro do partido nazi. A história, como
o Sr. José Cabral deve saber, tem muitas dessas coincidências. Como tenho
estado a apresentar razões e fatos até certo ponto desanimadores para o Sr.
José Cabral, vou desde já animá-lo com a indicação de um resultado certo,
positivo, que adviria da aprovação do seu projeto. Resultaria dele –
alegre-se o dominicano! – um grande número de perseguições a oficiais do
exército e da armada (exceto em Cascais) e a funcionários públicos. Perderiam
os seus lugares os que não quisessem ter a indignidade de repudiar a sua
Ordem. Resultaria portanto, a miséria para as suas famílias, onde é possível
– e isto é que é grave – que se encontrassem pessoas devotas de Santa
Teresinha do Menino Jesus, personagem que ocupa, na atual mitologia
portuguesa, um lugar um pouco acima de Deus. Resolver-se-ia, é certo, no
estilo inesperado do "roulement" que não rola, o problema do
desemprego – para aqueles atuais desempregados, bem entendido, que têm por
Grão-Mestre Adjunto o Sr. Conselheiro João de Azevedo Coutinho. Seriam essas
as conseqüências internas da aprovação do projeto: dois zeros – um para o
efeito antimaçônico da lei, outro para a barriga de muita gente. Seriam essas
as conseqüências internas. Vou tratar agora das conseqüências externas, isto
é, das conseqüências que adviriam da aprovação do projeto para a vida e o
crédito de Portugal no estrangeiro. Esse aspecto da questão, esse resultado,
não só possível mas quase certo, creio bem que não ocorreu ao Sr. José
Cabral. Presto homenagem – e a sério – ao seu patriotismo, embora lamente que
seja um patriotismo tão analfabeto. Existem hoje em atividade, em todo o
mundo, cerca de seis milhões de Maçons, dos quais cerca de quatro milhões nos
Estados Unidos e cerca de um milhão sob as diversas Obediências Independentes
do Império Britânico. Assim, cinco-sextos dos Maçons hoje em atividade são
Maçons de fala inglesa. O milhão restante, ou conta parecida, acha-se
repartido pelas várias Grandes Obediências dos outros países do mundo, das
quais a mais importante e influente é talvez o Grande Oriente de França. As
Obediências Maçônicas são Potências autônomas e independentes, pois não há
governo central da Maçonaria que é por isso menos "internacional"
que a Igreja Romana. Há Obediências Maçônicas que poucas relações têm entre
si; há até Obediências que estão de relações suspensas ou cortadas. Dou dois
exemplos. A Grande Loja de Inglaterra cortou em 1877, por um motivo técnico,
as relações, que ainda não reatou, com o Grande Oriente de França.
A mesma Grande Loja cortou, em 1933, as relações com a
Grande Loja das Filipinas, em virtude de divergências – cuja natureza não sei
mas presumo – quanto à maneira de desenvolver a Maçonaria na China. Assim a
Maçonaria necessariamente toma aspectos diferentes – políticos, sociais e até
rituais – de país para país, e até, dentro do mesmo país, de Obediência, para
Obediência, se houver mais que uma. Dou um exemplo. Há em França três
Obediências independentes (Obs.: esse número não é o mesmo nos dias de hoje –
A. Calado) – o Grande Oriente de França, a Grande Loja de França (prolongada
capitularmente pelo Supremo Conselho do Grau 33) e a Loja Regular, Nacional e
Independente para a França e suas Colônias (Obs.: Trata-se da Grande Loja
Nacional Francesa – A. Calado). O Grande Oriente é acentuadamente, radical e
anti-religioso; a Grande Loja limita-se a ser liberal e anticlerical; a
Grande Loja Nacional não tem política nenhuma. Dou outro exemplo. O Grande
Oriente de França tem uma grande influência política, mas, exceto através
dessa, pouca influência social. A Grande Loja de Inglaterra não se preocupa
com política, mas a sua influência social é enorme. Conquanto, porém, a
Maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode considerar-se como unida
espiritualmente. O espírito dos rituais, e sobretudo o dos Graus Simbólicos
(nos quais, e sobretudo no Grau de Mestre, está, já para quem saiba ver ou
sentir, a Maçonaria inteira), é o mesmo em toda a parte, por muitas que sejam
as divergências verbais e rituais entre graus idênticos, trabalhados por
Obediências diferentes. Em palavras mais perspícuas, mas necessariamente
menos claras: quem tiver as chaves herméticas, em qualquer forma de um Ritual
encontrará, sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras.
Resulta desta comunidade de espírito profundo, deste
íntimo e secreto laço fraternal, que ninguém quebrou nem pode quebrar, que
uma Obediência, ainda que tenha poucas ou nenhumas relações com outra, não vê
todavia com indiferença o ser esta atacada por profanos. Os Maçons da Grande
Loja de Inglaterra não têm, como se disse, relações com os do Grande Oriente
de França. Quando, porém recentemente surgiu em França, a propósito dos casos
Stavisk e Prince, uma campanha antimaçônica, de origem aliás ultra-suspeita,
a vaga simpática, que potencialmente se estava formando em Inglaterra pelos
conservadores que atacavam o Governo Francês, desapareceu imediatamente. O
"Times", conservador mas acentuadamente maçônico, relatou as
manifestações contra o Governo Francês com uma antipatia que roçou pela
deturpação de fatos. E há muitos casos semelhantes, como o de certo escritor
maçônico inglês, que em seus livros constantemente ataca o Grande Oriente de
França, mudar completamente de atitude ao responder a uma escritora inglesa
antimaçônica, que afinal dissera pouco mais ou menos o mesmo que ele sempre
havia dito. Nisto tudo, que serviu de exemplo, trata-se de coisas de pouca
monta, simples campanha de jornal, e por certo de atitudes espontâneas e
individuais da parte dos Maçons que as tomaram.
Quando porém se trate de fatos maçonicamente graves,
como seja a tentativa por um governo, de suprimir ou perseguir uma Obediência
Maçônica, já a ação dos Maçons não é tão individual e isolada, nem se resume
a uma maior ou menor antipatia jornalística. Provam-no diversas complicações,
de origem aparentemente desconhecida, que encontrou em países estrangeiros o
Governo de Primo de Rivera, e que encontraram, e ainda encontram, os Governos
da Itália e da Alemanha (Obs.: Este artigo foi escrito em 1935, durante,
portanto, a vigência dos governos Mussolini e Hitler – A. Calado). Esses,
porém, são países grandes e fortes, com recursos, de vária ordem, que em
certo modo podem contrabalançar aquelas oposições. Vem mais a propósito citar
o caso de um país que não é grande nem influente na política européia em
geral. Refiro-me à Hungria e ao que se passou com o célebre empréstimo
americano. Aqui há anos, pouco depois da guerra (Obs.: a 1ª guerra mundial –
A. Calado), o Governo Húngaro decretou a supressão da Maçonaria no seu
território. Pouco depois negociava um empréstimo nos Estados Unidos. Estava o
empréstimo praticamente feito quando veio da América a indicação final de que
ele não seria concedido se não se restabelecessem "certas instituições
legítimas". O Governo Húngaro percebeu e viu-se obrigado a entrar em
transações com o Grão-Mestre; disse-lhe que autorizava a reabertura das Lojas
com a condição (que parece do Sr. José Cabral) de que nelas pudessem assistir
profanos. É escusado dizer que o Grão-Mestre recusou. O Governo manteve
portanto a "suspensão" das Lojas... e o empréstimo não se fez. Ora
isto sucedeu com a Maçonaria Americana, que não faz propriamente política nem
mantém relações muito intensas com as Obediências européias à exceção das
britânicas. Tratava-se, porém, de uma grave injúria à Maçonaria, e o
resultado foi o que se vê.
Não venha o Sr. José Cabral dizer-me que não
precisamos de empréstimos do estrangeiro. Nem só de empréstimos vive o país.
Precisa, por exemplo, de colônias, sobretudo das que ainda tem. E precisa de
muitas outras coisas, incluindo o não incorrer na hostilidade ativa dos cinco
mil e tal milhões de Maçons que, por apolíticos, ainda não nos têm
hostilizado. Creio que disse o suficiente para que o Sr. José Cabral e os
outros Srs. deputados compreendam perfeitamente qual pode e deve ser o
alcance da aprovação deste projeto na vida e no crédito de Portugal. Antes de
acabar, porém, quero dar-lhe uma pequena amostra da espécie de gente em cuja
antipatia ativa incorreríamos. Tomarei por exemplo a Grande Loja Unida de
Inglaterra, não só pela importância que para nós têm as nossas relações com
aquele país, mas também porque qualquer ação dessa Grande Loja – a Loja-Mãe
do Universo, com cerca de 450.000 Maçons em atividade – arrasta consigo todos
os Maçons de fala inglesa e todas as Obediências dos países protestantes. Do
resto da Maçonaria nem é preciso falar. São Maçons, sob a obediência da
Grande Loja de Inglaterra, três filhos do Rei – o Príncipe de Gales,
Grão-Mestre Provincial de Surrey, o Duque de York, Grão-Mestre Provincial de
Middlesex, e o Duque de Kent, antigo Primeiro Grande Vigilante. É Maçom o
genro do Rei, Conde de Harwood, Grão-Mestre Provincial de West Yorkshire. São
Maçons, em sua maioria, os fidalgos ingleses, sobretudo os de antiga
linhagem. São Maçons, em grande número, os prelados e sacerdotes da Igreja de
Inglaterra, o clero mais profundamente culto de todo o mundo, a Igreja
protestante que mais perto está, em dogma e ritual, da Igreja de Roma.
Não prossigo, porque já basta... Lembro todavia que os
três grandes jornais "conservadores" ingleses – o
"Times", o "Sunday Times" e o "Daily Telegraph"
– são ao mesmo tempo maçônicos. Acabei. Convém, porém, não acabar ainda.
Provei neste artigo que o projeto de lei do Sr. José Cabral, além do produto
da mais completa ignorância do assunto, seria, se fosse aprovado: primeiro,
inútil e improfícuo; segundo, injusto e cruel; terceiro, um malefício para o
país na sua vida internacional. Não considerei, porque não tinha que
considerar, se a Maçonaria merece o mau conceito em que evidentemente a tem o
Sr. José Cabral e outros que nada sabem da matéria. Esse ponto estava fora da
linha do meu argumento. Como, porém, a maioria da gente não sabe raciocinar,
pode alguém supor que esquivei a esse ponto. Vou por isto tratar dele embora
protestando contra mim mesmo. Quem sofre com isso é o leitor. A Maçonaria
compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o
elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano – isto é, o que
resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes
graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos
países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento
histórico, perante as quais, de país para país e de época para época reage,
quanto à atitude social, diferentemente. Nos primeiros dois elementos, onde
reside essencialmente o espírito maçônico, a Ordem é a mesma sempre e em todo
o mundo. No terceiro, a Maçonaria – como aliás qualquer instituição humana,
secreta ou não – apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de
Maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de
que ela não tem culpa. Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira,
porém, em torno de uma só idéia – a "tolerância"; isto é, o não
impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a
Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama "doutrina
maçônica" são opiniões individuais de Maçons, quer sobre a Ordem em si
mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São divertidíssimas:
vão desde o panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão
de Arthur Edward Waite, ambos tentando converter em doutrina o espírito da
Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas; a Maçonaria nada tem
com elas. Ora o primeiro erro dos Antimaçons consiste em tentar definir o
espírito maçônico em geral pelas afirmações de Maçons particulares,
escolhidas ordinariamente com grande má fé. O segundo erro dos Antimaçons
consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está
materialmente dividida, como já expliquei. A sua ação social varia de país
para país, de momento histórico para momento histórico, em função das
circunstâncias do meio e da época, que afetam a Maçonaria como afetam toda a
gente. A sua ação social varia, dentro do mesmo país, de Obediência para
Obediência, onde houver mais que uma, em virtude de divergências doutrinárias
– as que provocaram a formação dessas Obediências distintas, pois, a haver entre
elas acordo em tudo, estariam unidas. Segue daqui que nenhum ato político
ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em
geral, ou até dessa Obediência particular, pois pode provir, como em geral
provém, de circunstâncias políticas de momento, que a Maçonaria não criou.
Resulta de tudo isto que todas as campanhas antimaçônicas – baseadas nesta
dupla confusão do particular com o geral e do ocasional com o permanente –
estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da
Maçonaria. Por esse critério – o de avaliar uma instituição pelos seus atos
ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros
ocasionais – que haveria neste mundo senão abominação?
Quer o Sr. José Cabral que se avaliem os papas por
Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de
Roma perfeitamente definida em seu íntimo espírito pelas torturas dos
Inquisidores (provenientes de um uso profano do tempo) ou pelos massacres dos
albigenses e dos piemonteses? E contudo com muito mais razão se o poderia
fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos
papas, obrigando assim, espiritualmente, a Igreja inteira. Sejamos, ao menos,
justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos particulares,
ponhamos-lhe a crédito, em contrapartida, os benefícios que dela temos
recebido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes ter
sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito – quando
expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio Papa – pelo Maçom Frederico
II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellinton e Blucher eram
ambos Maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio
a assentar a futura vitória dos Aliados – a "Entente Cordiale",
obra do Maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à
Maçonaria a maior obra da literatura moderna – o "Fausto" do Maçom
Goethe. Acabei de vez. Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos Maçons e aos
que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a
Antimaçonaria àqueles Antimaçons que são os legítimos descendentes
intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram
Vigilantes de uma Loja de Jerusalém. Deixe isso tudo, e no próximo dia 13, se
quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem porque será 13 de Fevereiro – o
aniversário daquela lei de João Franco que estabelecia a pena de morte para
os crimes políticos.
Diário de Lisboa, nº 4.388 de 4 de fevereiro de 1935.
É sempre um regalo, ler Fernando Pessoa, muito
especialmente quando discorre, tão magistralmente, sobre um assunto que tanto
nos interessa.
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