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PERGUNTAS & RESPOSTAS

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sábado, 20 de janeiro de 2024

RECONSTRUÇÃO DA MAÇONARIA

Fernando Marques da Costa
I
O tema é aliciante, mas não será também eterno, ou, pelo menos, trissecular? Senão para toda a Maçonaria, pelo menos para parte dela. Para que a diferença entre as partes se compreenda é talvez útil começar por um princípio. Um e não O princípio porque esse nos levaria por veredas escarpadas de onde muitos (e alguns bons) historiadores têm caído no precipício brumoso das origens. Um princípio sensato para esta abordagem é a criação (não usei deliberadamente «passagem») da Maçonaria moderna. Prefiro moderna a especulativa, pois o facto de ela não ser operativa não a torna, ipso facto, especulativa, longe disso, e o caminho para se tornar «especulativa» será longo. A moralização sobre símbolos operativos e o assistencialismo não são práticas especulativas. Essa primeira Maçonaria moderna deixa- va, aliás, as especulações para outra sede, a Royal Society, tendo alguns, mais venturosos, uma dupla filiação.

A primeira Maçonaria moderna criou um modelo, teorizou e constitucionalizou uma prática e ritualizou um imaginário operativo que se se podia, porventura, rever nos símbolos, não se revia, seguramente, na sua transformação em pilares de uma liturgia que nada diriam às suas antigas práticas que em 1717 eram já muito difusas, se é que algumas ainda subsistiam.

Pondo de parte minudências que só enfadariam este texto, esse modelo manteve-se, quase imutável, quase insensível aos tempos e às mudanças (por vezes profundas) da sociedade. Sobreviveu, até hoje, sem necessidade de se questionar, nem ter angústias reflexivas sobre «reconstrução» ou mesmo «repristinação» da Maçonaria. A Grande Loja Unida de Inglaterra, não tem dúvidas (nem insegurança creio?) em relação ao seu modelo. Pode ter a tristeza de ver os seus números diminuírem e inquietar-se sobre o que isso poderá significar no futuro. E inquieta-se, porque é prova disso o esforço que tem feito nas duas últimas décadas para encontrar novas formas de comunicar exteriormente as virtudes da sua prática. Mas, essa inquietação e esse esforço não concebem nunca uma mudança de modelo. Não é um dogma, nem essa maçonaria anglo-saxónica é dogmática. Ela é fundacionalmente assim: a Religião e a Coroa, a Moral e a Beneficência têm de ser entendidas à luz da conceção que a sociedade inglesa delas tem e, não à luz dos conceitos dominantes no lado de cá do Canal da Mancha. Esses conceitos estão a mudar? Estarão, sem dúvida, por alguma razão existe um declínio numérico. Este é, talvez, um daqueles casos em que é difícil conceber, que o proverbial pragmatismo inglês, capaz das mais surpreendentes mudanças quando necessário, seja capaz de gerar uma alteração de modelo; de paradigma, como um «especulativo» diria.

Deixemos, assim, em paz esses maçons insulares e concentremo-nos na realidade da Europa continental. Na nossa realidade; no fundo naquela onde sempre se colocou e coloca a questão da «reconstrução». Duvido, aliás, que se deva identi- ficar a permanente necessidade de refletir sobre a «reconstrução» como uma questão; ela é algo que é identitário. A Maçonaria continental (para abrevi- ar descritivos) não tem um modelo, tem modelos, não tem uma unidade, tem diversidade, não tem um centro, tem (e teve sempre) vários centros, mesmo dentro de cada um dos países. Esta singularidade tornou-a autorreflexiva, plástica nas formas e diversa nas soluções. Não ignorou o seu tempo, ou melhor dito, não se colocou fora do seu tempo, como uma entidade cristalizada na forma e no propósito. Esta é a sua característica fundacional que não a torna adogmática, apenas diferente na sua matriz, na sua inserção social, no seu propósito e na sua evolução. Ela é evolutiva e o adogmatismo não é o que a caracteriza (embora ela própria ache que sim), mas o evolucionismo. Dito desta maneira, parece até que estamos a falar de maçonarias que nada têm de comum entre si, separadas, como que irreversivelmente, pelo “british chanell”. Não é verdade, entre o modelo inicial não há diferenças - método e valores fundacionais, e em muitos casos até práticas são semelhantes - é a forma como ele é apropriado pelas sociedades dos diversos países onde se instala que as torna diferentes. Mesmo quando procura ser «regular» ela é diferente, na sua sociologia e na sua prática.

A «reconstrução» não é um trabalho de Penélope, mas (como lhe compete), um trabalho de construtores: ela não refaz, ela acrescenta, transforma, adapta, faz com os restos do primeiro Templo o segundo; diverso na forma. A prática, as práticas para ser mais rigoroso, pondo de parte rituais e simbologia, tanto quanto isso é possível em Maçonaria, têm no continente europeu um traço comum que permite cerzir a joalharia dispersa de projetos diversos: as maçonarias continentais são sociedades de pensamento e exprimiram, exprimem e exprimirão formas de pensamento. Não é esse o caso da Maçonaria anglo-saxónica. Esta, apesar de todos os pontos (pontes) que temos em comum e que nos ligam por um conjunto de valores, não são, nem querem ser, sociedades de pensamento – uso o plural porque já há mais do que uma. Não passo, porém, essa fronteira que nos separa de um território mais complexo: não classifico as maçonarias continentais como sociedades filosóficas, porque isso é uma coisa distinta e o qualificativo não se aplica na maioria das vezes, não só hoje, como nos últimos 300 anos. Uma sociedade filosófica é aquela onde os seus membros procuram coletivamente uma verdade comum, através de um trabalho de reflexão racional. A Maçonaria, percorre o caminho inverso: debate verdades, procura o confronto das diferenças, não procura nem a unidade nem a unicidade.

Todos, ou quase todos, nos reconhecemos nessa característica de sociedade de pensamento, num leque amplo que pode ir do iniciático ao filosófico, do simbólico ao «societário» (uma palavra horrível, mãe de tantos equívocos). Esquecemos, porém, que há uma diferença muito grande entre pensamento e ação. A ação, não é um complemento direto do pensamento. O produtor de pensamento não tem, por esse facto, de ser agente da ação. Nesse logro caíram várias vezes diversas maçonarias que acabaram por se perder nas trincheiras de guerras que não lhes competia travar, arvorando-se em oficiais de exércitos que não eram os seus e sofrendo as necessárias baixas, que, neste caso, se refletem no imaginário que geram na sociedade e na corveia reputacional. A Maçonaria é uma sociedade de pensamento, não é uma sociedade de ação, para isso existe outro tipo de organizações, de toda a natureza, onde o maçon se pode inscrever para deixar, espera-se, a sua marca distintiva.

Aceitemos, assim, essa característica de sociedade de pensamento e que é esse o nosso trabalho. Todavia, é preciso ter presente que o trabalho maçónico é um trabalho individual e não coletivo. Tudo na Maçonaria é um trabalho (os franceses diriam uma «démarche») individual. A loja maçónica é a unidade de trabalho de um conjunto de maçons, mas, o trabalho que aí se faz não é coletivo, por um número de razões. Primeiro, pela sua natureza iniciática que é, por definição, individual, interior e intransmissível como experiência, ainda que, naturalmente, o conhecimento iniciático seja transmissível. Segundo, pela reflexão sobre os símbolos, que não tendo dogma interpretativo (nem nos graus simbólicos) são alvo de uma reflexão e de uma moralização que é de natureza pessoal e caracterizam o percurso próprio que o maçon (cada maçon) escolhe para a sua vivência maçónica que pode variar, do espiritualismo e misticismo, ao perenialismo guenoniano, ou ao racionalismo. Terceiro, porque o trabalho em loja é individual, o contributo que cada um presta deve ser fruto da sua individualidade; social, cultural, religiosa, profissional, política, etc.

É o seu contributo individual distintivo que é enriquecedor para os outros, e é o seu reflexo nos outros que enriquece o próprio, não como um espelho que cultiva a vaidade de quem se mostra, mas como um solista que estimula a resposta da orquestra. O trabalho da loja, extremando o argumento, não existe em si, ao contrário de uma missa, por exemplo, que tem uma função em si. Como sociedades de pensamento, considerando a loja como a unidade matricial, as lojas vivem da diversidade dos pensamentos, enriquecem-se nessa e dessa diversidade individual e a síntese que o Orador tem de fazer não é a da fixação de uma interpretação, mas a de «concluir», sistematizando os olhares plurais dos maçons sobre o tema que esteja a ser debatido.

É por isso que a «obra da maçonaria» (uma expressão popular cuja hermenêutica me escapa) não existe sobre a sociedade, mas sobre o indivíduo. Sempre que o entendimento foi outro o resultado foi desastroso. O indivíduo é o centro do trabalho sobre si próprio e o «canal» de transmissão dos seus valores e pensamento na sociedade. É aliás duvidoso, e até perigoso para a unidade interna, que «a Maçonaria», isto é uma qualquer organização maçónica, tenha expressão pública em defesa de uma política ou linha de orientação específica, porque o entendimento dos seus membros não é homogéneo, nem nunca será. Pode uma organização maçónica defender, ou condenar, a eutanásia? Não pode, ou pelo menos não deve. Pode um maçon defender ou condenar a eutanásia? Pode e até deve, a relevância do tema merece testemunhos lúcidos. Estes podem, porém, ser (e são) contraditórios. Uma sociedade de pensamento, não é uma escola de doutrina. É uma escola de pensamentos. Aprender a pensar no confronto com a opinião dos outros é um exercício exigente cujo objetivo não é chegar a uma conclusão, mas à compreensão da diversidade de pontos de abordagem do tema. É uma escola para aprender a pensar, cabendo a cada um tirar a sua conclusão. Por isso é que a liberdade de pensamento não é apenas a recusa de dogmas, mas a liberdade de chegar a conclusões contraditórias. Excetuam-se, naturalmente, a defesa de alguns valores essenciais, quando, por qualquer razão, estes estejam ameaçados. Disso falaremos mais adiante.

Os maçons adoram falar em «egrégora». Por vezes esquecem que ela tem inerente e imanente uma dimensão espiritual, já que se trata de um conceito místico-filosófico. Quando se fala de egrégora não se fala de um coletivo a que os indivíduos pertencem, bem pelo contrário fala-se do oposto, do coletivo espiritual (de energias mentais ou emocionais) criado pela adição das energias individuais. É a congregação de mentes individuais, convergente num ponto de entendimento, que gera a energia da egrégora.

É essa capacidade de poder criar egrégoras que reforça a distinção da Maçonaria (neste caso das lojas, porque é onde ela se cria) enquanto sociedade de pensamento de uma qualquer tertúlia. Há uma distinção entre sociedades de pensamento e grupos de reflexão. Estes são (talvez) a expressão moderna dos «salões» do século XVIII, onde, numa «soirée», se podia debater literatura ou filosofia, ou apenas conversar e ouvir música. Agora, é em torno de um almoço ou jantar. Há um orador convidado que apresenta um tema e depois segue-se um debate despreocupado. Há tertúlias para todos os gostos e se os egos forem desmesurados é sempre possível criar mais uma (com as lojas maçónicas às vezes acontece o mesmo). Ora há uma diferença entre um grupo que debate um tema e uma sociedade de pensamento. A Sedes, por exemplo, também não é uma sociedade de pensamento, mas uma associação que debate imensos temas e tem grupos de trabalhos específicos para o fazer, onde participam pessoas vindas dos mais diversos quadrantes.

Se o trabalho «operativo» do maçon é individual e expressão da sua individualidade e, por isso, distintivo, ele não é desvinculado da ligação comum a um conjunto de princípios e valores que são a base sobre a qual assenta o seu trabalho e é referência de todo o pensamento. Eles não convergem num território comum, mas nascem de uma base identitária que assenta no reconhecimento do valor intrínseco da iniciação, no trabalho sobre o simbolismo e o ritual e na adesão e valorização de um património de valores humanistas (e filosóficos) fundamentais. É isto que a distingue das tertúlias e associações de todo o tipo e a constitui como uma sociedade de pensamento. Ali não se reúnem todos os homens ou mulheres que querem refletir, mas sim e apenas, as que o querem fazer naquela arquitetura específica e em torno daqueles valores. O meio é, assim, condição de expressão de uma liberdade de pensamento exercida num espaço e condições próprias que a tornam única e singular e que lhe permitiram atingir uns vetustos 300 anos.

É isso que a Maçonaria é como sociedade de pensamento. É isso que os maçons são como pensadores livres naquele contexto.

A forma do trabalho não é acessória. Pode ser até (e é até) para alguns, a razão de ser da Maçonaria e de se ser maçon. Isto é, para muitos maçons o ritual, e o simbolismo a ele associado, são o que verdadeiramente importa na Maçonaria. Pondo de parte este entendimento, no qual convergem as maçonarias anglo-saxónicas e alguns hiper-ritualistas continentais, defensores de uma maçonaria exclusivamente iniciática e de Tradição, a verdade é que a «forma» de trabalho é indissociável do modo de reflexão em loja. Uma reunião de loja não é uma celebração, ao contrário de uma missa, por exemplo. A forma como ele se processa é uma metodologia que cumpre dois objetivos; consagrar a natureza simbólico-iniciática da Maçonaria e condicionar a forma do debate de ideias. A forma não condiciona apenas a relação com o «outro» (a ausência de debate, por exemplo) mas a circunstância ritualizada em que o próprio se exprime (pedido de palavra e posição). Por isso, o digital não é uma forma trabalho maçónico, apenas uma forma de matar saudades dos amigos.

II
Definido o traçado do edifício e assumindo que ele precisa de reconstrução é preciso saber o que ruiu. Desta vez não é o exército babilónico que destrói o Templo no 19º ano de reinado de Nabucodonosor II. A destruição vem de dentro; não há inimigo pior do que o do interior. Não se trata, claro, de «destruição», mas sim de «evolução», como vimos lá atrás. Esta é que pode ir numa direção que ponha em risco os pilares em que assenta o edifício e aconselhe «reconstrução».

O «evolucionismo» maçónico não convoca o darwinismo antes a psicologia, no clássico debate do inato e do adquirido, popularizado por Francis Galton (1822-1911) - que era aliás meio primo de Darwin. A extensão da «reconstrução» que em dado momento histórico se pode tornar necessária numa organização maçónica é medida pelo modo como se interpretam as suas características fundacionais e se conceptualiza a sua relação com a sociedade. Aquilo que é inato à Maçonaria, ritual, simbolismo, fraternidade e beneficência evolui por interpretação: estão sempre lá, mudando apenas a forma como se exprimem e a expressão que lhes é conferida no conjunto do trabalho maçónico. Já a conceptualização da relação com a sociedade é adquirida (apropriada) em cada momento histórico. Se os historiadores da ritualística identificam com rigor a evolução, ou involução, ritual nem sempre refletem sobre aquilo que é mais importante: a relação, e a importância, que lhe é dada no conjunto dos trabalhos maçónicos. Ora esta valorização (ou desvalorização) depende da forma como é concebida a outra parte da equação, isto é, a forma como é entendida a relação com a sociedade.

De forma redutora pode dizer-se que as maçonarias: quanto mais «societárias» menos atenção dedicam ao ritual e quanto mais ritualistas (ou tradicionalistas) menos atenção ligam as questões societárias. Sei que este raciocínio é simplista e como tal impreciso, mas, lato senso, é aqui que nos encontramos. Esta é aliás a crítica que as diversas maçonarias fazem entre si. É, portanto, por aqui que é necessário «reconstruir» o edifício.

A primeira coisa que é preciso reconhecer é que nenhuma dessas conceções é errada. Nem uma é mais «legitima» do que a outra. São apenas entendimentos diversos do que deve ser a prática maçónica alicerçados em visões diferentes do que é o seu património cultural e histórico, de qual é a sua ancestralidade e função.

A reconstrução da Maçonaria passa, em primeiro lugar por ultrapassar esta visão que faz com que o entendimento de que a Maçonaria é um centro de união tenda a restringir-se a um centro de união de uma diversidade semelhante se me permitem o trocadilho. As organizações maçónicas, fruto de um processo histórico que aqui não vem ao caso, «arrumaram-se» não apenas em famílias «regulares» versus «irregulares», mas, de entre as últimas, em organizações mais «tradicionalistas» (apesar de não reconhecidas pela Grande Loja Unida de Inglaterra) e mais societárias, centradas na intervenção na Polis. Esta divisão tem os seus alicerces numa cultura obediencial, isto é, num entendimento de que a Maçonaria se exprime numa organização e que essa organização, na sua ação e dogmática é expressão de entendimentos maioritários entre os seus membros. É difícil conceber uma coisa mais empobrecedora. Recordo, apenas como pormenor histórico, a resistência que o Grande Oriente de França fez, no século passado à introdução do Rito Escocês Retificado, um rito de matriz cristã extremamente rico.

O primeiro passo da reconstrução é incentivar a diversidade. Não se trata de aceitar, mas mesmo de incentivar, porque essa diversidade de práticas é extremamente enriquecedora e permite corredores de passagem entre margens que são espaços de liberdade para a evolução e crescimento individual de cada maçon. A Obediência tem de se circunscrever a um papel pequeno e funcional de ligação administrativa e financeira entre as lojas. E a cultura organizacional tem de ser a que incentiva as lojas a percorrerem caminhos diversos dos mais tradicionalistas (iniciaticamente) aos mais progressistas (socialmente). Essa liberdade existe na doutrina constitucional, mas as organizações tendem (todas elas) a reproduzir um modelo. É assim por todo o lado, na sociedade, nas empresas etc. Por isso, uma liderança modernizadora (reconstrutora) tem de ser ativa e incentivadora de uma abertura a novos caminhos de prática maçónica para que convivam entre si na surpresa das suas diferenças. Estamos pobres porque menos diversos e, talvez, um pouco arrogantes, porque olhamos com menos consideração para aqueles que entendem a Maçonaria de um modo diferente do nosso.

O segundo passo para a reconstrução é o reconhecimento de que a Maçonaria é Maçonaria. Isto é, que a sua primeira característica distintiva (a primeira que temos de aceitar como nos dizendo alguma coisa) é que ela assenta numa prática ritual e num conhecimento simbólico. A prática ritual não é uma mera gestualidade e os símbolos não são decoração. Compreender a natureza intrínseca do ritual (e a necessidade do seu rigor) e a riqueza cultural, filosófica e espiritual dos seus símbolos é indissociável da prática da Maçonaria.

Sem a sua valorização pelo estudo e reflexão não existe Maçonaria. Uns podem querer praticá-la no seu rigor extremo, estão no seu direito e era bom que mais existissem. Mas, o inverso não é verdadeiro; o minimalismo ritualista é uma forma travestida de uma tertúlia ou de uma confraria. O ângulo dos tacões não tem de ser rigorosamente de 90 graus, nem a abertura do compasso rigorosamente de 45 graus, mas é preciso saber o porquê, o seu significado, a sua função. Despojada de alguns dos seus elementos a operação ritual perde eficácia. Não precisa de ser uma área do Pavaroti, mas convém saber «ler» a partitura.

A Maçonaria não é a prancha, a prancha é uma coisa que se faz (ou não, consoante o entendimento de cada loja) numa sessão maçónica. Assim, este segundo passo exige uma maior formação maçónica e um reconhecimento de que ritual e simbolismo são elementos estruturantes, com uma componente espiritual (que é cultural e não religiosa) e que esta deve ser uma prática constante do maçon. Por isso, uma aposta numa cultura e formação maçónica é decisiva.

O terceiro elemento de reconstrução é o que vamos fazer em loja. Definida a Maçonaria como uma sociedade de pensamento é isso mesmo que se deve lá ir fazer: pensar de forma livre e coletivamente.

Sobre o quê? Tudo? Não, é fácil dizer que não há limites áquilo que se pode discutir em loja, para além dos constitucionalmente estabelecidos desde 1723: não se discutir política, nem religião. Mas há um limite, frequentemente ignorado. Hoje em dia, nas sociedades democráticas, tudo se discute e as sedes para esse debate são de toda a natureza e feitio. Das velhas academias ao Facebook. E cada um de nós pode pertencer a tantas instâncias de debate da atualidade, nacionais ou internacionais, quantas lhe aprouver. Porquê fazê-lo em Loja? Esta é uma forma errada de colocar a questão. Porquê e como fazê- lo em Loja, é a forma correta porque estes dois elementos são indissociáveis.

O porquê tem a ver com uma diversidade comungada. Debater entre pessoas diversas é hoje fácil de fazer em muito lado.

Mas, nós debatemos a partir de uma «plataforma» comum, a partir de uma visão que sendo distinta tem como alicerces um fundo cultural humanista que é cultivado (no sentido de culto) como matriz inalienável do exercício da liberdade de pensamento. Por isso a diversidade no recrutamento é tão importante, quanto mais diversificada for a composição da loja, mais rico o seu trabalho, seja ele de que natureza for.

O como, é matéria mais delicada. Há um primeiro como que é mais fácil de descartar: a reflexão tem de ser diferenciadora, isto é, tem que acrescentar a visão que os nossos valores trazem à análise de um tema, sob pena de estarmos a fazer exatamente o mesmo que outros fazem noutras sedes. A preocupação constante com o contributo de valores fundamentais ao formato das soluções é cada vez mais necessário numa sociedade que tende a enunciar e a esquecer-se dos valores com a mesma veemência.

O como mais difícil, é o ponto onde fixamos o olhar. A perspetiva é essencial à arte e à arquitetura, mas o pensamento prospetivo é essencial à evolução das sociedades. Tendemos a correr atrás da bola que alguém (nunca inocentemente) colocou a girar à nossa frente. É o que a comunicação social faz todos os dias. Uma sociedade de pensamento tem de procurar uma visão prospetiva, procurar olhar para lá da curva da estrada, sinalizar riquezas e misérias humanas, ameaças e seguranças, incentivar o diálogo, sublinhar os valores que devem desenhar as soluções. Esta é a parte difícil da prancha onde o arquiteto traça o desenho do novo edifício, mas é a que nos deve distinguir.

O quarto elemento de reconstrução traz-me à memória Pessoa:

Todo começo é involuntário.
Deus é o agente. O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada Teu olhar desce. «Que farei eu com esta espada?» Ergueste-a, e fez- se.

Fosse assim tão simples! Mas não é. Nem nunca será. As maçonarias que têm no seu seio Lojas com uma preocupação com a Polis vivem num eterno (ainda que recente) debate sobre «Que farei eu com esta espada?», isto é, como se exprime na sociedade o trabalho que se faz na Maçonaria. É através do trabalho individual de cada maçom na sociedade, soa a pouco para alguns. É através de uma voz mais ativa da Maçonaria (entenda-se a organização) na sociedade, soa a demais para alguns. «Que farei eu com esta espada?». Talvez um bom princípio fosse pegar nela. Em Pessoa, o herói encontra a espada em suas mãos. A Maçonaria (as lojas) tem de começar um pouco antes: tem de primeiro pegar na espada, ou seja, refletir de forma modernizadora, seja sobre as matérias que lhe são específicas, simbolismo e ritual, seja sobre as matérias do mundo contemporâneo que convoquem a sua reflexão. «Ergueste-a, e fez- se», não se trata propriamente de erguer, ou então erguer no sentido de dar a ver. Nesse sentido sim.

Mas, eu que sou um bibliófilo olho para a minha estante, percorro lentamente a suas prateleiras, releio títulos, e reconheço que, com raríssimas exceções, a Maçonaria portuguesa, no seu conjunto, vive virada para dentro de si. A reconstrução da Maçonaria tem de seguir no caminho oposto. O caminho oposto não é o da «abertura à sociedade», uma coisa que ninguém sabe muito bem o que quer dizer. O caminho oposto é aquele que resulta de partilhar com a sociedade o pensamento que se tenha feito sobre alguns dos grandes problemas da contemporaneidade, não para expor ou apontar uma solução, para isso já há muitos profetas, mas para carrear elementos que ajudem a pensar sobre eles. É esse o contributo que uma sociedade de pensamento pode dar. Que bom que era poder chegar a uma livraria e poder encontrar um livro sobre um qualquer tema onde se pudesse ler «contributo da organização «tal» para a reflexão sobre ...» É por aí também que passa a reconstrução da Maçonaria.

É bom, porém, que não se perca de vista nessa reconstrução que a nossa sociedade não precisa apenas de valores de referência para os seus problemas «materiais», mas também para os espirituais e que afastarmo-nos destes é alienar uma parte riquíssima do nosso património cultural e uma necessidade crescente da sociedade contemporânea. Quem hoje em dia confunde espiritualidade com religiosidade pode não ser o «ateu estúpido» das constituições de 1723, mas é certamente alguém que não compreende o que é a espiritualidade, que vive num passado (não particularmente brilhante) e que ignora as dinâmicas, contraditórias do seu tempo.

Fonte: Revista Fanzine nº 4

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